«O Cágado»
Conto de Almada Negreiros
139- «O CÁGADO»
Havia um homem que era muito senhor da sua vontade. Andava
às vezes sozinho pelas estradas a passear. Por uma dessas vezes viu no meio da
estrada um animal que parecia não vir a propósito — um cágado.
O homem era muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo,
agora estava a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo
era, na verdade, o tal cágado da zoologia.
O homem que era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades
para contar ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a
família era capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e
parou de repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar
que a família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou
atrás. Quando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da
primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.
O homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a
espreitar para dentro e depois de muito espreitar não conseguiu ver senão o que
se pode ver para dentro dos buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada.
Meteu a mão com cautela e nada; a seguir até ao cotovelo e nada; por fim o
braço todo e nada. Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos
naturais de que um homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.
Então foi buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é
habitual em varas haver assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o
cágado morava ainda muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi
por ali abaixo, exactamente como uma vara perdida.
Depois de estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de fato
submetida a nova orientação. Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos
e ao lado do tanque estava um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde
no tanque e, cheio até mais não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do
cágado. Um balde só já ele sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a
noventa e oito baldes e que já faltavam só dois para cem e que a água não havia
meio de vir ao de cima, o homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a
pensar em todas as espécies de buracos que possa haver.
— E se eu dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si
o homem que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar
assim menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.
O maldito sol também não ajudava nada. Talvez que fosse
melhor não dizer nada do cágado ao almoço. A pensar se sim ou não, os passos
dirigiam-se involuntariamente para as horas de almoçar.
— Já não se trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não;
agora trata-se apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que
está em prova, esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de
fraquezas!
Ao lado do buraco havia uma pá de ferro, destas dos
trabalhadores rurais. Pegou na pá e pôs-se a desfazer o buraco. A primeira
pazada de terra, a segunda, a terceira, e era uma maravilha contemplar aquela
majestosa visibilidade que punha os nossos olhos em presença do mais eficaz
testemunho da tenacidade, depois dos antigos. Na verdade, de cada vez que
enfiava a pá na terra, com fé, com robustez, e sem outras intenções a mais,
via-se perfeitamente que estava ali uma vontade inteira; e ainda que seja
cientificamente impossível que a terra rachasse de cada vez que ele lhe metia a
pá, contudo era indiscutivelmente esta a impressão que lhe dava. Ah, não! Não
era um vulgar trabalhador rural. Via-se perfeitamente que era alguém muito
senhor da sua vontade e que estava por ali por acaso, por imposição própria,
contrafeito, por necessidade do espírito, por outras razões diferentes das dos
trabalhadores rurais, no cumprimento de um dever, um dever importante, uma
questão de vida ou de morte — a vontade.
Já estava na nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o
mesmo ímpeto da inicial, foi completamente indiferente por um almoço a menos.
Fosse ou não por um cágado, a humanidade iria ver solidificada a vontade de um
homem.
A mil metros de profundidade a pino, o homem que era muito
senhor da sua vontade foi surpreendido por dolorosa dúvida — já não tinha nem a
certeza se era a quinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível
recomeçar, mais valia perder uma pazada.
Até ali não havia indícios nem da passagem da vara, da água
ou do cágado. Tudo fazia crer que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o
homem era muito senhor da sua vontade, sabia que tinha de haver-se de frente
com todas as más impressões. De fato, se aquela tarefa não houvesse de ser
árdua e difícil, também a vontade não podia resultar superlativamente dura e
preciosa.
Todas as noções de tempo e de espaço, e as outras noções
pelas quais um homem constata o quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas
de participar no esburacamento. Agora, que os músculos disciplinados num ritmo
único estavam feitos ao que se quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios
e outros arabescos cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios
músculos.
Umas vezes a terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes
camadas de areia e de lama; todavia, estas facilidades ficavam bem subtraídas
quando acontecia ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que
há no subsolo. Sem incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é
absolutamente indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da
sua vontade pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a
intensidade e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do
centro da Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas
entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era
muito senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efectivamente interminável.
Por mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se
explica ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos
corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.
Entretanto, cá em cima na terra, a família do homem que era
muito senhor da sua vontade, tendo começado por o ter dado por desaparecido,
optara, por último, pelo luto carregado, não consentindo a entrada no quarto
onde ele costumava dormir todas as noites.
Até que uma vez, quando ele já não acreditava no fim das
covas, já não havia, de fato, mais continuação daquele buraco, parava
exactamente ali, sem apoteose, sem comemoração, sem vitória, beatamente como um
simples buraco de estrada onde se vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a
revolta servia para nada.
Caindo em si, o homem que era muito senhor da sua vontade
pediu-lhe decisões, novas decisões, outras; mas ali não havia nada a fazer,
tinha esquecido tudo, estava despejado de todas as coisas, só lhe restava saber
cavar com uma pá. Tinha, sobretudo, muito sono, lembrou-se da cama com lençóis,
travesseiro e almofada fofa, tão longe! Maldita pá! 0 cágado! E deu com a pá
com força no fundo da cova. Mas a pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do
que ele supunha, deixando uma greta aberta por onde entrava uma coisa de que
ele já se tinha esquecido há muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de
alegria, mas durou apenas três segundos, a segunda foi de assombro: teria na
verdade furado a Terra de lado a lado?
Para se certificar alargou a greta com as unhas e espreitou
para fora. Era um país estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas
tinham outras proporções diferentes das que ele tinha na memória. 0 sol também
não era o mesmo, não era amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho
nos reflexos. Mas a sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que,
quando quis sair da cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os
habitantes daquele país estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de
poder ver as coisas naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...
Como tinha muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e
teve de ir de mãos no chão e o corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe o
sangue à cabeça. Então, começou a ver que não tinha nada a esperar daquele país
onde nem sequer se falava com a boca, falava-se com o nariz.
Vieram-lhe de uma vez todas as saudades da casa, da família
e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o caminho até casa, fora ele
próprio quem o abrira com uma pá de ferro. Resolveu-se. Começou a andar o
buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou; subiu, subiu, subiu...
Quando chegou cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa
que não havia antigamente — o maior monte da Europa, feito por ele, aos
poucochinhos, às pazadas de terra, uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem
querer, o maior monte da Europa.
Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa
da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade
que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito
mais.
O homem que era muito senhor da sua vontade estava
cansadíssimo por ter feito duas vezes o diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir
na sua querida cama, mas para isso era necessário tirar aquele monte maior da
Europa, de cima da cidade, onde estava a casa da sua família. Então, foi buscar
outra pá dos trabalhadores rurais e começou logo a desfazer o monte maior da
Europa. Foi restituindo à Terra, uma por uma, todas as pazadas com que a tinha
esburacado de lado a lado. Começavam já a aparecer as cruzes das torres, os
telhados das casas, os cumes dos montes naturais, a casa da sua família, muita
gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros que ficaram aleijados, e
o resto como dantes.
O homem que era muito senhor da sua vontade já podia entrar
em casa para descansar, mas quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas,
todas. Faltavam poucas, algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo
bem até ao fim. Quando já era a última pazada de terra que ele ia meter no
buraco, portanto a primeira que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o
torrão estava a mexer por si, sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver porque
era — era o cágado.
Almada Negreiros
Almada Negreiros
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