137 - «UM CONTO “HITCHCOKIANO” DE EXTRACÇÃO RAIANA
Os preparos para a boda da irmã mais nova estavam na recta
final. O casamento iria realizar-se na Ermida do Senhor São Brás no próximo
domingo. E o banquete seria no monte da família. Tinham sido duas semanas de
trabalho árduo.
«Ermida de São Brás dos Matos»
Mina do Bugalho
Durante o último mês não conseguira encontrar-se com Juan
António. Juan António, o seu marido. Marido que vivia em Badajoz
temporariamente. Pelo menos ela assim desejava que fosse. Na manhã daquela
quinta-feira, a meio do outono de 1942, o caos estava instalado no monte.
Avisara a mãe que só voltaria no sábado à noite. A tempo de assistir ao enlace
da irmã. Ao pai já há muito tempo que não dava explicações. Aliás, nem se
falavam, embora vivessem na mesma casa. Mandara preparar a charrette com o
cavalo baio nos varais. Entregara os dois filhos à guarda de Violante, a sua
criada de confiança, e agora circundava pela direita o Monte da Várzea. Mais à
frente evitaria o Posto Fiscal de São Brás dos Matos e entraria na estrada
velha que corria paralela com a Ribeira da Asseca. Dali até à Azenha da
Palmeira seria um pulo. Era nessa azenha, propriedade da família, mas
abandonada desde 1936, desde que a Guerra Civil Espanhola por ali passara, já
lá iam seis anos, que sempre se encontrava com o marido.
«Juan António»
Francisco Franco, por Crispín Martínez
Casados desde 1930, com dois filhos, nascidos em 31 e 32,
mas separados devido ás vicissitudes da guerra. O marido, nascido no seio de
uma família espanhola, monárquico, ferozmente anti-republicano, assim que se
dera o alzamiento do general Franco, abandonara a casa e correra a alistar-se
nas fileiras do general. Tinham sido tempos muito difíceis de ultrapassar, não
só devido à incompreensão da sua família, a quem não passava pela cabeça que se
deixasse mulher e filhos para se ir meter numa guerra daquelas, cujas
atrocidades eram diariamente relatadas pelos jornais e pelas telefonias, assim
como pela falta física que o marido lhe fazia. Sempre fora muito dependente
dele. Biblicamente, apenas o conhecera a ele. E como ele a fazia vibrar! Tinha
sido feita mulher por ele e para ele. Nos seus sonhos mais ardentes, era sempre
ele que desempenhava o principal papel. Hoje tudo estava bem. Dentro de algumas
horas estaria nos seus braços e tiraria a desforra de tanto tempo de abstinência.
«O Encontro do Casal»
Atracção Fatal, por JPGalhardas
Depois do encontro físico, depois de satisfeitos os
sentidos, na cama do antigo moleiro, num quarto que ela, ao longo dos anos, se
tinha preocupado em tornar confortável, colocando mantas regionais nas paredes
rústicas e tapetes no chão. Depois de comerem das empadas e outros mimos que
ela preparara antecipadamente, depois de beberem do vinho, sempre de qualidade,
de que a adega da família estava bem abastecida, ele adormeceu. Antes, pediu
desculpa, mas estava muito cansado. Foi então que ela, contente que nem um
pardal à solta, vendo que a mochila que ele trouxera, estava muito suja,
decidiu lavá-la na água do açude da azenha. Enquanto lavou a mochila,
cantarolou, alegre por estar com o seu homem.
De regresso ao quarto, verificando que ele ainda dormia,
examinou o conteúdo da mochila que tinha ficado na mesa junto à pequena
chaminé. Despertou-lhe a atenção uma carta, já amarrotada, que tinha sido
enviada de Madrid para o seu marido. Não resistiu e leu. Espantada, verificou
que era uma carta de amor. Uma tal Maria Dolores, de Madrid, dizia que as saudades
eram infinitas e que iria ter com ele a Badajoz num dos dias seguintes. Foi
como se levasse um murro no estômago, ficando sem respiração. Teve que sair do
quarto para se recompor.
«Maria Dolores, a Amante de Juan António»
O Roubo da Jóia, por JPGalhardas
Ela tinha tudo o que um homem pode desejar numa mulher: Era
dedicada, paciente, boa cozinheira, em suma, sabia tratar da sua casa. Era boa
mãe, sempre atenta ao crescimento dos filhos e às suas necessidades.
Compreendia que o marido, para realizar aspirações e anseios pessoais,
politicamente muito enraizados, tinha que permanecer fora de casa, já que
assumira responsabilidades durante o conflito que assolara o seu país de origem
nos últimos anos. Não admitira, nem sequer ao pai, que duvidasse do altruísmo
com que ele partira para a guerra. Encontrava-se com ele quase clandestinamente,
por vezes com um intervalo de meses, sempre com a esperança profunda de um dia
a vida de ambos se normalizasse. Em companhia dos filhos, naturalmente. E era
rica e bonita. Tinha uma pele clara, uma cintura estreita e peito firme. Era
alta e vistosa. E, sobretudo, amava o seu marido. Nunca se permitiria dividi-lo
com outra mulher.
«Ciúme e Vingança»
O Roubo da Jóia, por JPGalhardas
Voltou a entrar no quarto e pegou na caçadeira carregada com
dois cartuchos de chumbo grosso. Colocou uma almofada sobre a têmpora do
marido, encostou os canos da espingarda, fez pressão, e disparou.
Deitou o corpo do marido ao rio e regressou ao monte da
família, segurando as rédeas com a mesma galhardia com que horas antes tinha
feito o percurso inverso.
Uns dias depois, logo após o casamento da irmã, os
carabineiros encontraram o corpo do marido, encalhado no lado espanhol do
rio. A sua morte foi atribuída a um ajuste de contas, devido ao comportamento
que tinha tido durante a Guerra Civil Espanhola.
O sacana fascista do Juan António teve o merecido.
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