«Será o Benedito!»
O Mestiço, por Portinari
142- «SERÁ O BENEDITO!»
A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia
mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes
pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras
livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de
lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o
encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de
minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde
aguentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a
mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem
querer:
— O hôme da cidade, chi!...
Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos
insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe
aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por
detrás das mangueiras grossas do pomar.
Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu
me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo
das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que
defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando
sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que
eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do
mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou
nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:
— Mas será o Benedito! Não é assim, moço!
Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico
e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito
grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.
Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais.
O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o
Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que
eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele,
ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única
obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar
meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não
dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas
realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava
os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a
tuberculose que..."
— O que é isso?...
- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente
por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.
— Será o Benedito...
E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose
que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de
mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os
"chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de
rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se
queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os
dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos,
onde as violentas nuvens de setembro se reflectiam, numa brancura sem par.
Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um
chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais,
tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele coleccionava. Pela sujeira e
amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única
Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse
comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as
brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou
muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia
principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que
assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito
baixinho:
— Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.
E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto
dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus
"chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República.
Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de
resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me
contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela
nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”. E é o remorso
comovido que me faz celebrá-lo aqui.
Mário de Andrade
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