«Sermão de Santo António aos Peixes»
Por Padre António Vieira
Por aqui:
V Capítulo
168- «SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES»
Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho
contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que
cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o
riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de
ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos
pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo
roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem
tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral
que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar
aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos
antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército
inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu
vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe
sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos
fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e
foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de
uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na
mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse,
e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que
não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non
potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de
morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto
roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da
ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se
isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e
logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância
na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura.
O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o
rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter,
pois dele manam todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos
Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos
os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve
toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para
dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se
toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro
conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os
costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás
roncava de saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder:Nescis
quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo,
António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos
experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder,
quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.
Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a
Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos
homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos
peixes. Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade,
porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se
lhes pegam aos costados. que jamais os desferram. De alguns animais de menos
força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se
sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao
perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça,
nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e
mais a fome.
Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus
pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou
manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de
cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa,
engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima,
bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e
morrem com ele os pegadores.
Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo
pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista,
apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a
pátria, porque «eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti
sunt enim qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo
menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus
aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que
todos estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o
tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti
sunt qui quaerebant animam Pueri.
Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e
enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois
eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.
Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que
dizia: Mihi autem adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da
terra, que «eu só me quero pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e
senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo
com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e
parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor
fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez menor,
para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus,
que é imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros,
que ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não
morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis,
sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E posto que deste
modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos
devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos
grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram
juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era
significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre
os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e
outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi cortada
esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos
grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais
com eles.
Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se
pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles
morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome
e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que
morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar!
Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos
tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve
princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem
comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de
água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar.
Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a
queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos
meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos
com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não
conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e
conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos
melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos
outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso
haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal, porque tantas vezes vos
desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por
isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou
a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso
capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na
vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os
a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto
melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das
entenas e cair morto!
Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta
a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas
vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser
ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe.
Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como
ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no
mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não
contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar
poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e
eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se
o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no
quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis
ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.
À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta
sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem
pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um
voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu
o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia
em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a
voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais
depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo,
senão que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés.
Não quero que repareis no castigo, se não no género dele Que
caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto,
que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda
tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim,
diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é
que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo
ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat,
plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois
quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés, para que não ande.
Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se
contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro
se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.
Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem
perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela
mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram
dadas duas grandes asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae
magnae. E para quê? Ut volaret in desertum: «Para voar ao deserto.»
Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande maravilha.
Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta
sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas
para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas
para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram
as de Santo António. Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que
foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como
sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para
descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já
vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra),
imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem
servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar
com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no
fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais
seguros.
Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos
delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não
menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça,
parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com
aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E
debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham
constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito
polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em
se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado.
As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em
Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se
verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se
está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da
mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição,
vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu
próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera
mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas
outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os
braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é
verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras,
mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos
outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as
cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua
comparação já é menos traidor!
Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento
tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água, espelho natural não só da
terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por encarecimento, que «nas
nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. E
disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro
elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana
e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que
neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem
público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão
conhecidamente traidor!
Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em
que batem os vossas mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas
há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais
perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis
aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais,
eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais
do que dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso
pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da
verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para
haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era
necessário ser santo.
Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e
repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto
que do mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma
advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são
tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa
muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa,
pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque
todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e
malditos.
Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós
senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais
cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por
seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam
miseravelmente.
Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do
primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se
Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do
preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo,
que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo
o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra primeiro
que os demais?
Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do
mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a
moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio
naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus
sucessores fulminam contra os homens que tomam os bens dos naufragantes, também
os peixes por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o
mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta.
Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara
para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio
atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo
Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de
que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste
caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos
naufragantes.
Padre António Vieira
Amanhã, VI e último capítulo/ Sermão de Santo António aos Peixes.
Sem comentários:
Enviar um comentário