«O Violoncelo do Senhor O»
Pintura de Mário Leitão Silva
179- «O VIOLONCELO DO SENHOR O»
Estamos cercados e sob fogo inimigo.
O meu pai, como a maioria dos pais, irmãos mais velhos, e
alguns avós, foi combater. As crianças e as mulheres, os velhos e os doentes,
ficaram em casa, aguentando-se o melhor que podem.
Estou sempre com medo.
À noite, da minha janela, consigo ver o rasto branco do fogo
no céu e o brilho laranja dos morteiros. E faço de conta que estou a ver
estrelas cadentes e meteoros. As ruas da nossa cidade estão pejadas de tijolos,
pó, e vidros partidos. Não temos querosene para nos aquecermos. No Inverno
passado, dormimos vestidos na cozinha, junto de uma placa de metal a fazer de
fogão, que o meu pai montou antes de ir embora.
Já gastámos a madeira toda. Se nada mudar até ao Inverno que
vem, teremos de queimar mobília e livros para nos aquecermos. A comida
escasseia, obviamente. E a água. Juntamos água da chuva em bacias e baldes, ou
vamos a centros de distribuição e trazemos água para casa. Algumas pessoas
transportam contentores pesados em carroças, outras fazem-no em carrinhos de
mão. No Inverno, muitos usam trenós. Na semana passada, a minha mãe e eu vimos
uma senhora a transportar água numa cadeira de rodas.
Todas as quartas-feiras, às quatro horas, o camião de ajuda
humanitária estaciona numa rua perto da nossa zona, e fazemos fila para receber
sabão, óleo, conservas e farinha. Tudo está diferente: as lojas, os carros, e
os apartamentos foram destruídos. As escolas estão fechadas, quase não há
electricidade e gás. Os telefones também não funcionam.
Muitas pessoas foram embora. Algumas, como a Marya, a amiga
da minha mãe, ficam porque não têm para onde ir. Outras, como a minha mãe,
decidiram ficar, custe o que custar. A minha mãe não suporta a ideia de o meu
pai voltar e não encontrar ninguém. Quer que fiquemos aqui à espera dele.
Às vezes, suspira e diz:
— Sabes, não é a primeira vez na história que isto acontece.
Pode não ser a primeira vez que acontece, mas é a primeira
vez que me acontece, a mim! Estou quase sempre zangada.
Costumo brincar com os meus amigos, debaixo da grande
escadaria do nosso prédio. Às vezes, jogamos cartas, fazemos jogos de palavras,
lemos livros, desenhamos, falamos. Ou imaginamo-nos a comer as coisas de que
mais gostamos.
Outras vezes, não conseguimos ficar quietos e corremos pelos
corredores, rindo e fazendo barulho.
É então que o Senhor O abre a porta e grita:
— Estejam calados, miúdos!
Como se os miúdos fossem uma coisa má…
Quando o camião da ajuda humanitária chega às
quartas-feiras, às quatro horas, todos saem de casa. Parece uma festa, estar na
rua com tanta gente ao mesmo tempo. Até o Senhor O está na fila. Contudo, nunca
conversa com ninguém. Espera, tal como os outros, mas sem olhar para ninguém.
— Deve ser um filósofo — diz a minha mãe, baixinho, acenando
na direcção dele.
— Um filósofo — repete a Marya, num tom trocista.
A Marya não concorda com a minha mãe e eu também não. O
Senhor O não está a reflectir! Está apenas a ser desagradável. Os miúdos não
gostam dele. Sempre que encontram um saco de papel vazio, rebentam-no mesmo à
porta dele. Parece uma granada a explodir.
Depois rimo-nos e fugimos, imaginando o medo que ele deve
sentir. Quando não está connosco na fila para o camião da ajuda humanitária, o
Senhor O está a tocar violoncelo. É um violoncelo maravilhoso, um dos melhores.
O meu pai, que adora música e toca harmónica, contou-me o seguinte acerca do
violoncelo do Senhor O:
— O tampo e o fundo do instrumento foram fabricadas com ácer
alemão, e polidos com um verniz especial feito em França. O braço do violoncelo
é feito de mogno das Honduras e a escala é de ébano do Ceilão. Quanto ao arco,
foi talhado numa madeira muito macia que existe no Brasil. A peça em marfim da
ponta veio de África. Cooperaram pessoas de todo o mundo para fazer o
violoncelo do Senhor O — disse o meu pai.
Também me contou algumas coisas sobre o músico:
— Quando era jovem, o Senhor O viajou por todo o lado e
tocou nas maiores salas do mundo para centenas de pessoas. Era muito aplaudido.
Se o meu pai soubesse dos sacos de papel, ficava zangado.
Mas o meu pai está longe, a lutar nas montanhas. Levou consigo roupas quentes e
a harmónica. Não se sabe quando voltaremos a vê-lo!
Numa quarta-feira de tarde, a Elena e eu estávamos a brincar
debaixo das escadas quando ouvimos o camião da ajuda humanitária a chegar… Mas
não corremos ao seu encontro… Entretanto, ouvimos o som das pessoas a deixarem
as suas casas, bem como o murmúrio de conversas e risadas. E… ouvimos o rocket a
cair!
O camião ficou destruído e algumas das pessoas ficaram
gravemente feridas. Mesmo que limpemos os destroços, não virá mais nenhum
camião trazer-nos mantimentos: somos um alvo demasiado fácil! Teremos de andar
quilómetros para conseguir arranjar alguma coisa e nada mais tornará os nossos
dias diferentes uns dos outros.
Porém, na primeira quarta-feira depois do sucedido, o Senhor
O, trajado a rigor, instalou-se na praça com uma cadeira e o seu violoncelo.
Apertou o arco, esfregou-o com resina, e começou a tocar.
— É uma música de Bach — disse a minha mãe, com os olhos a
brilhar.
É, de certeza, uma peça de música difícil, cheia de notas
fortes e tranquilizadoras.
O Senhor O tocou como se estivesse no palco grandioso de uma
sala de concertos, a tocar para pessoas que lhe vão atirar flores quando
terminar. Tocou como se não estivesse sozinho, numa cidade sitiada, no meio de
uma praça deserta, na qual nenhum camião de ajuda humanitária voltará a
estacionar.
— Vão matá-lo! — exclamou a Marya, aflita.
— Não se darão ao trabalho de matar um velhote que toca
violoncelo — a minha mãe tranquilizou-a.
Mas eu não estou tão certa disso, porque a música do
violoncelo faz-nos sentir menos zangados e a coragem do violoncelista torna-nos
menos medrosos. Se eles soubessem, quereriam acabar com esta música, que nos
alimenta tanto como o camião fazia.
A partir desse dia, o senhor O passou a tocar todos os dias
na praça, às quatro horas em ponto. Um dia, depois de ter começado a tocar,
teve uma cãibra. Encostou o violoncelo à cadeira e abanou a perna. Ouvimos uma
descarga de granadas e vimos nuvens de fumo preto. Quando este se dissipou,
vimos que o músico não foi ferido. Mas tudo o que restou do violoncelo foi
madeira lascada e cordas emaranhadas. “O que irá alimentar-nos agora?”, perguntei
a mim própria.
No dia seguinte, encontrei um saco de papel castanho.
Pequeno e amarrotado. Alisei-o o melhor que pude e coloquei-o debaixo do
dicionário grande do meu pai. Ficou lá toda a noite.
Na manhã seguinte, peguei nos meus lápis de cor, que guardo
numa caixa de charutos vazia. A maioria está muito gasta, mas tenho muitas
cores. Devagar, para não rasgar o papel, desenhei o Senhor O, vestido de
cerimónia, sentado numa cadeira a tocar violoncelo. Depois desenhei flores
coloridas a caírem sobre ele.
Mal acabei, fui ao apartamento do músico. Encostei o ouvido
à porta: estava tudo silencioso. Fiz deslizar o saco por debaixo da porta e
desatei a correr.
Nessa mesma tarde, para surpresa de todos, o Senhor O saiu
do apartamento todo aperaltado. Viu-me à janela e inclinou a cabeça num
cumprimento. Do bolso do casaco tirou uma harmónica e começou a tocar, sentado
na cadeira.
E todos os dias, a partir dessa data, às quatro horas da
tarde, o Senhor O toca harmónica na praça. As melodias são tristes, breves e
doces, em tudo diferentes das músicas grandiosas que ele tocava no violoncelo.
— Mas não deixa de ser Bach, na mesma — diz a minha mãe.
A música dá-nos alegria e a coragem do tocador de harmónica
faz-nos sentir menos medrosos.
Jane Cutler
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