«Sermão de Santo António aos Peixes»
Por Padre António Vieira
Por aqui:
III Capítulo
166- «SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES»
Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e
a felicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular,
infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da
natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. De alguns somente farei
menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na
Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro
nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que
só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael,
que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um
rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em acção de que o
queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no
peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as
entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim
Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe
mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o
coração para lançar fora os demónios: Cordis eius particulam, si super
carbones ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad
ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o anjo,
e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego,
aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista;
e tendo um demónio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o
mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demónio e
nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias,
o velho, e lançou os demónios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom
coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este
peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo
de Santo António.
Abria Santo António a boca contra os hereges, e enviava-se a
eles, levado do fervor e zelo da fé e glória divina. E eles que faziam?
Gritavam como Tobias e assombravam-se com aquele homem e cuidavam que os queria
comer. Ah homens, se houvesse um anjo que vos revelasse qual é o coração desse
homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é!
Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que
havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de
vós, e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os
demónios fora de casa.
Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer
livrar dos demónios perseguis vós?! Só uma diferença havia entre Santo António
e aquele peixe: que o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António
abria a sua contra os que se não queriam lavar.
Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer
neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim,
que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.
Passando dos da Escritura aos da história natural, quem
haverá que não louve e admire muito a virtude tão celebrada da rémora? No dia
de um santo menor, os peixes menores devem preferir aos outros. Quem haverá,
digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão
grande na força e no poder, que não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme
de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza,
a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por
diante? Oh se houvera uma rémora na terra, que tivesse tanta força como a do
mar, que menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo!
Se alguma rémora houve na terra, foi a língua de Santo
António, na qual, como na rémora, se verifica o verso de São Gregório
Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo
Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e
ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a
virtude da rémora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do
leme. E tal foi a virtude e força da língua de Santo António. O leme da
natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes
obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão
desobediente e rebelde, mostrou a língua de António quanta força tinha, como
rémora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na
nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é
vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de
António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem,
como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos,
embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos,
corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se
a rémora da língua de António lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a
ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando
na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as
costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com
perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse
parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e
tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração,
sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e
deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em
Caribdes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de
António os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que
também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto
que ainda se conserva inteira) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.
Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa,
passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a
qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos
estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes
grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana
na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o
torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais
admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho,
da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do
pescador.Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com
inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta
qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me
espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco.
Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais
modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não
quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes;
baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No
mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as
ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e
pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível
que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?!
Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera
tremer.
Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão
de Santo António, e às palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que
todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos, tremendo, confessaram seus
furtos; todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer
mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vida e de ofício e se
emendaram.
Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos
peixes com um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a
pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me
convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os
peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a
saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os
Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão
deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e
perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina
providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente
dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti,
peixezinho, quatro.
Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a
circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas
praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam
vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos! Oh quão altas
e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus
juízos!
Filosofando, pois, sobre a causa natural desta providência,
notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário,
e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal
forma que os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte
inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitectura, é porque
estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos
dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves
marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no
ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que
direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que
direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e
que bem empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação
que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só
devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima,
considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno. Não me
alegou para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer
David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, ne videant vanitatem.
«Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»
Pois David não podia voltar os seus olhos para onde
quisesse?! Do modo que ele queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de
modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste Mundo, para
qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo «tudo é vaidade»: Vanitas
vanitatum et omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de David a vaidade,
havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo
em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o
Céu, ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a
mercê que pedia a Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou
aquele peixezinho tão pequeno.
Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos
peixes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças do muito que
ajudais a ir ao Céu, e não ao Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os
que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todas as santas famílias, que
professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os verdadeiros cristãos
ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo
festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de
ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e
custosos os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum
e da abstinência dos justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e
simpatia com a virtude, que, proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira
carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se
chamam vossos, nenhum dia vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos
entre os signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que
têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento,
cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo:Spiritus Domini
foecundabat aquas.
Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis;
e para que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos
pobres com o seu remédio. Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os
vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica
o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e
os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos;
mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os
multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do
deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se
peixes mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor
o farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a
sua bênção.
Padre António Vieira
Amanhã, IV capítulo/ Sermão de Santo António aos Peixes
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