«Os Fantasmas do Castelo»
Texto para Teatro de Conceição Roque
205- «OS FANTASMAS DO CASTELO»
Personagens:
Voz off
Brás (o guarda mais velho)
Simão (o guarda mais novo)
Zé Pedrada (o pré-histórico)
Maria Lasca (a pré-histórica)
Endovélico (o Deus)
Vitélio Rufus Tubulus (o romano)
Alarico (o visigodo)
Galvo (o mouro)
Pêro Rodrigues
Diogo Lopes de Sequeira
Isabel Cerniche (Esposa de Diogo Lopes de Sequeira)
***
***
Voz of: Estamos na Idade Média, na viragem do século XIV
para o XV, fez cem anos que o castelo do Alandroal foi construído. Nas noites de
Lua Cheia o castelo recebe visitas especiais, que por ali se passeiam e se
cruzam. Cruzam-se sem respeitar épocas, encontram-se e baralham-nos a História.
Brás, o velho guarda, ao longo da sua vida de ronda noturna, conhece bem estes visitantes, e de tão bem os conhecer, domina os tempos - o passado, o presente e o futuro, da Pré- História aos nossos dias. Vamos com eles fazer uma viagem através dos séculos. Com eles, o Brás, o Simão e os fantasmas do castelo!
Simão: Ó Brás!
Brás: Assustaste-me rapaz! Não podes andar por aí aos gritos
a esta hora da noite!
Simão: Tens medo que acorde os mortos, é?
Brás: Tens é que os respeitar; e aos vivos também, que trabalham
de Sol a Sol, às vezes sabe lá Deus com que saúde… têm que descansar, coitados.
Brás: Olha, vem lá gente. Ah, é o Zé Pedrada e Maria Lasca!
Simão: É lá, isso não é de mal?!
Brás: Não, não é de mal! Eles são da Idade da Pedra, não os
conheces?
Simão: Da Idade da Pedra?! Como posso eu conhece-los?! Velho
o suficiente para isso és tu, não eu!
Brás: Ora… conheço-os daqui, do castelo. Costumam passear
por aqui, sei bem quem são. Vivem no povoado das Águas Frias, mesmo em frente
ao Lucefecit.
Zé Pedrada: Olhe que o meu pai é bem conhecido! É o mestre
Zé das placas gravadas, único especialista no assunto, nos arredores e nas suas
vizinhanças.
Maria Lasca: Eu, meu lindo soldadinho, também tenho sangue
de artista, eu e o meu pessoal também temos andado a gravar, mas nas rochas do
rio.
Simão: Nas rochas do rio?! Estes pré-históricos são loucos!
Brás: Esses são os romanos.
Simão: Os romanos?!
Brás: Deixa lá… continuem o vosso passeio que aqui o Simão não
as apanha todas.
Zé Pedrada: Ah, percebi. Vamos continuar o nosso passeio
sim, está um luar lindo. Então, até depois.
Maria Lasca: Adeus soldadinho!
Simão: Adeus Maria!
Simão: Adeus Maria!
Brás: Vão com Deus! Aproveitem esta maravilhosa noite de Lua
cheia. Ai o amor…a juventude … quem me dera lá voltar …
Simão: Ó Brás, vem pr`aqui muita gente namorar à noite?
Brás: Se vem… e há-de continuar a vir.
Brás: Ora ora, se não é Sua Sacralidade o deus Endovélico!
Por aqui hoje?
Endovélico: Boas noites senhores! Sabes como é Simão, de vez
em quando tenho que vir desanuviar. Aquilo lá em cima no cabeço da Mota é uma
azáfama maluca! Eles são peregrinos de Sul, eles são peregrinos de Norte… todos
querem o meu oráculo: Faço um bom negócio? Vou melhorar do meu abcesso? A minha
filha casa bem? Tenham paciência, um Deus também precisa de descansar!
Brás: A treinar o Latim?
Endovélico: Pois sim, tem que ser. Desde que os romanos
chegaram é só Latim… tive que aprender, se não, como ia entender os meus novos
crentes? Até já sei ler…havias de ver cada ara bonita que eles me oferecem!
Brás: Não te envaideças tanto Endovélico, depois de ti
outras divindades se adorarão…
Endovélico: Eu sei Brás, hão-de vir deuses, deusas, santos,
santas e muitos devotos. Por exemplo, ultimamente tenho ouvido umas notícias lá
dos lados do oriente …mas isso não me preocupa a mim, eu sou dum tempo em que somos
muitos!
Simão: Eu cá sou devoto de Santa Maria de Terena, e quando
estou aqui de serviço, a minha padroeira é Santa Maria da Graça. Brás: Outra
padroeira virá…
Simão: Outra padroeira?! Qual?
Brás: Sim, Nossa Senhora da … esquece Simão, com o tempo
hás-de lá chegar.
Endovélico: Olhem meus senhores, vou andando. Vou dar mais
uma voltinha por aqui e depois, ala para o cabeço! Boas noites.
Brás: Boa noite sua divindade.
Simão: Olha-me este, armado em Deus.
Brás: E é um Deus
Simão, tem muitos devotos, já tinha antes da chegada dos romanos, agora então…
Simão: Pagãos…
Vitélio Rufus: Que tens tu contra os pagãos?
Simão: Quem é este agora?
Brás: Vitélio Rufus Túbulus, como vai essa saúde?
Simão: Ah, ah, ah, Vitelo Cufus Tubus… que raio de nome é
esse?
Brás: Simão! Vitélio é o seu nome próprio, Rufus, porque é
ruivo e tubulus, tubo de metal, porque ele é ferreiro.
Vitélio Rufus: Tu tem respeitinho rapaz! Eu sou o mestre
ferreiro de Vilares.
Simão: De vilares?! Daquelas ruinas?!
Vitélio Rufus: Ruinas?! É uma “villa” bem bonita.
Simão: Vila?! Aquilo nem aldeia é!
Brás: Ai Simão… uma vila romana é um grande monte agrícola,
com a bonita casa do proprietário, as casas dos trabalhadores, os jardins, os
pomares, o lagar, a carpintaria, neste caso até tem forja.
Vitélio Rufus: Vim aqui hoje exactamente para tratar de um
negócio de cobre.
Simão: Negócios, aqui, a esta hora da noite?!
Vitélio Rufus: Não há melhor lugar nem melhor hora. De dia
está um calor que nem apetece mexer uma palha! E o mineiro então, coitado, que
tem que fazer mexer a mula carregada de cobre desde lá dos lados das minas,
quase à beira do Guadiana. Assim, pela fresca e com este luar, o negócio faz-se
melhor.
Simão: Minas no tempo dos romanos?!
Vitélio Rufus: Ora pois, o que pensas tu? Temos minas, mineiros e
ferreiros. Olhem, tenho que ir andando, combinei encontrar-me com ele lá fora,
junto à lagoa. Boa noite aos dois.
Brás: Adeus Vitélio!
Simão: Passa bem Vitelo Cubus Tubus!
Brás: Simão… não te disse já como se chama o homem?
Simão: Um nome daqueles, quem o consegue decorar?! Só a mãe
dele!
Brás: Chiu… parece-me que estou a ouvir conversa…
Simão: Deve ser o vitelo que encontrou a mula.
Brás: És um engraçadinho. O outro não vinha para aqui com a
mula carregada. Deve ter encontrado outra pessoa no caminho.
Brás: Quem se aproxima?
Alarico: Boas noites!
Brás: És tu, Alarico!
Alarico: Amigo Brás, como vai essa saúde? Tens companheiro
novo?
Brás: A saúde vai indo, com o peso dos anos. O novo
companheiro é Simão.
Alarico: Alarico, o visigodo, ao seu dispor.
Simão: Visigodo?! Ai que eu fico com vertigens… mesmo agora
daqui abalou um romano…
Alarico: Eu sei, tivemos ali um bocado à conversa.
Simão: E conhecem-se… ai que eu dou em maluco!
Brás: Aqui nas redondezas todos conhecem o Alarico. Já
encontraste mais alguma?
Simão: Anda à procura de noiva?
Alarico: Qual noiva… ando à procura das pedras do palácio do
meu pai.
Brás: Palácio, Alarico?! Era mais uma casa grande…
Alarico: Fosse como fosse, se tivesse em pé hoje era minha.
E mesmo desmantelada, é minha na mesma!
Simão: Por isso é que procuras as pedras? E já encontraste
alguma?
Alarico: Encontrar até encontrei, mas espetaram com elas
noutras construções. Aqui no castelo, lá em Juromenha, em São Brás dos Matos e
sabe-se lá onde mais. Isto tem sido uma trabalheira para mas devolverem… mas um
dia eu vou conseguir, e todos poderão ver a casa soberba que o meu pai me
deixou!
Alarico: Vem gente, boa altura para eu ir andando, não me
posso entreter mais hoje.
Simão: Passa bem e melhor sorte!
Brás: Adeus Alarico. Quem lá vem?
Galvo: Sou eu Galvo, o Mouro.
Brás: Bons olhos o vejam, Galvo.
Galvo: Boas noites. Guarda novo?
Simão: Boa noite, sou Simão, às suas ordens. Lá vejo alguém
hoje de quem já ouvi falar!
Brás: Admira-me… e a quem ouviste tu falar de Galvo?
Simão: Tu já me conheces, sabes como sou curioso. Um dia
armei-me de coragem e descaramento e quis satisfazer a minha curiosidade.
Encontrei o alcaide ali à porta e como o
homem é dos poucos que aqui sabe ler, pedi-lhe que me dissesse do que falam as
pedras escritas que estão nas paredes do nosso castelo.
Brás: Ah, então foi assim que ouviste falar dele!
Simão: Dele e de outros, mas o mouro ficou-me cá nas ideias.
O construtor do nosso castelo, um mouro…
Galvo: E então? Não te parece bem firme?
Brás: Deixa-o, é uma grande obra sim senhor, para durar
ainda muitos séculos!
Simão: Lá estás tu com o que há de vir, como sabes se vai
aguentar em pé tanto tempo?
Brás: Eu cá sei. Então já encontraste a tua arca?
Galvo: Deixa-me cá… como sabes, terminei a obra do castelo
para a Ordem de Avis, pedi que me guardassem aqui a arca enquanto me ausentava.
Fui procurar uns parentes ao Castelo Velho; não encontrei lá vivalma e quando
voltei ninguém sabia da minha arca…há cem anos que a procuro!
Simão: Há cem anos?! O outro procura pedras e tu, uma
arca…hum… devia estar cheia de ouro.
Galvo: Sim, o meu ouro, que eram os meus planos, os meus
instrumentos de trabalho, as minhas roupas, algumas recordações … parte da
minha vida…
Brás: Lamento Galvo. Muitos ainda vão dar voltas ao miolo
para a encontrar…
Pero Rodrigues: Boas noites meus senhores! Temos tertúlia em
noite de Lua Cheia?
Galvo: Ora se não é Pero Rodrigues, ilustre capitão de pouca
gente!
Brás: Suba cá, nobre amigo!
Pero Rodrigues: Não subo não, que as pernas já me pesam
muito…
Galvo: Pudera, só para recuperar o gado, o que não teve de
penar…
Simão: Este ao menos encontrou o que procurava, não?
Brás: Encontrou pois. Este senhor foi nosso alcaide até há algum
tempo atrás. Um homem importante na crise que há pouco atravessamos. Nunca
ouviste falar dele?
Simão: Bom, eu não sou daqui, sou de Terena, temos lá
alcaide. Mas já ouvi falar dele sim senhor; deve ser mesmo importante…
Galvo: Um grande alandroalense! Só por ele valeu a pena ter
construído este castelo!
Brás: Se não fossem homens como este, Simão, agora o teu
patrão era castelhano!
Pero Rodrigues: Ora, ora, os senhores assim envergonham-me…
Brás: Só tem de que se orgulhar, e a nós também! O alcaide
do Alandroal, cavaleiro do Mestre de Avis, o nosso rei D. João!
Galvo: Assim é, Brás. Já que não sobe, Pero Rodrigues, desço
eu para ir ter consigo. Vamos os dois dar uma volta junto às muralhas; está uma
bela noite para pormos a conversa em dia.
Simão: Que noite…e eu a pensar que isto de ficar de guarda
ia ser um grandessíssimo aborrecimento…
Brás: Esta é a tua primeira noite de vigília com Lua Cheia,
não vai ser sempre assim.
Simão: Então é por ser noite de Lua Cheia que há tanto
movimento por aqui?
Brás: Sim, Simão. Nestas noites todos saem, todos têm que
fazer aqui. Uns vêm desanuviar, passear, namorar, dar uma volta nas noites
quentes; outros procuram incansavelmente algo; há, ainda, os que desejam encontrar
alguém… nem que sejamos nós…
Simão: E eu gosto de os ver por aqui… deixam-me um pouco
bocado baralhado, é verdade, mas o que eu fico a saber?!
Brás: Mais ficarás a saber se te portares bem! Para
continuares neste posto não te podes esquecer que temos que fazer o giro de vez
em quando; não é só guardar a porta e estar na conversa a noite toda!
Simão: Então vamos lá, antes que apareça mais alguém.
Simão: Vês? Não é falta de vontade nossa… quem são estes
agora?
Brás: Fala baixo! É Diogo Lopes de Sequeira e a sua esposa …
tem um feitio esta senhora…
Simão: Parece que está zangada, a criatura! Deixa lá ouvir
que já continuamos a ronda.
Isabel Cerniche: A tua sorte, Diogo, é estar este luar
inspirador, se não eu te dizia das boas!
Diogo Lopes de Sequeira: Tu, para me dizeres das boas, estás
sempre inspirada.
Isabel Cerniche: Homem, tu não me azedes, que eu solto a
língua!
Diogo Lopes de Sequeira: Solta, solta agora que mais ninguém
te ouve!
Isabel Cerniche: Casa com ele que ele vai longe, dizia a
minha mãe… ai, ai, triste engano…
Diogo Lopes de Sequeira: E não fui longe, Isabelinha?!
Isabel Cerniche: Pois foste, até chegaste à India. Mas se
não tivesses metido a mão no que não era teu…
Diogo Lopes de Sequeira: Calúnias, Isabel! Como podes tu
acreditar em calúnias?! Eu sempre fui um homem respeitável.
Isabel Cerniche: Sim, sim… viu-se na Conferência de Elvas e
Badajoz, em vez de tomares partido pelo nosso rei, D. João III, ficaste do lado
dos castelhanos…
Diogo Lopes de Sequeira: Ai mulher, tu fazes-me perder a
cabeça! Outra vez essa conversa?! Já te disse que isso foi um mal entendido!
Isabel Cerniche: Mal entendido… olha, vou para casa, que na
tua companhia o luar não me inspira.
Diogo Lopes de Sequeira: Vai sim, vai indo à frente, que
esse teu mau génio até espanta os demónios!
Simão: Realmente, que feitiozinho! O homem é mesmo como ela
diz?
Brás: Não é nada! Foi alcaide do Alandroal, comandante da
primeira frota portuguesa a chegar a Malaca e governador da Índia. Não é pouco!
Simão: Houve ali uma parte da conversa que me deixou
confuso… não entendi bem aquela do nosso rei D. João III…
Brás: Havias de lá chegar…
Simão: Chegar aonde?
Brás: Chegar ao futuro, Simão. Onde está D. João III.
Simão: Espera ai… Então se D. João III será rei no futuro, e
o Diogo Lopes de Sequeira é do seu tempo, então quer dizer…
Brás: Isso Simão, isso.
Simão: Ai homem, dás cabo de mim… gente do passado, gente do
futuro… que mais conheces tu?
Brás: Algumas pessoas… e, sobretudo, algumas coisas, que te
iam deixar ainda mais perturbado… tantas coisas, Simão, que a tua cabeça,
sempre tão imaginativa, nem sonha…
Brás: pareces um velho a falar! Tu é que quiseste saber…
Simão: Brás, Brás… isto
é demais para mim… tanta coisa numa só noite… Afinal quem sou eu, quem és tu,
Brás? Porque podemos nós conhecer gente de antes e de depois?!
Brás: Porque tu, Simão, eu e eles... nós somos os Fantasmas do
Castelo!
Conceição Roque
Muito bem Conceição. Adorei os fantasmas do castelo! Parabéns ao texto que escreveste e ao grupo de teatro da universidade sénior.
ResponderEliminarAmiga
Olha... a arqueóloga também é dramaturga... interessantíssimo o texto e muito bem humorado.
ResponderEliminarParabéns!
Mesmo agora aqui cheguei e quero comentar: 5 estrelas
ResponderEliminarJá li a peça duas vezes e vou lê-la outra vez.
Parabéns à autora e ao elenco!