«O que foi Sepultado»
Conto de Miguel Unamuno
207- «O QUE FOI SEPULTADO»
A mudança de comportamento sofrida pelo meu amigo, era
extraordinária. Um rapaz jovial, espirituoso e despreocupado, transformara-se
num homem tristonho, taciturno e excessivamente escrupuloso. Eram
frequentes os seus momentos de abstracção e, durante esses momentos dir-se-ia
que o seu espírito viajava por caminhos de outro mundo. Um dos nossos amigos,
leitor e decifrador assíduo de Browning, recordando a estranha composição em
que este nos fala da vida de Lázaro depois de ressuscitado, costumava dizer que
o pobre Emilio visitara a morte. E fizemos todas as diligências para adivinhar
a causa daquela misteriosa mudança de feitio; mas foram diligências
infrutíferas.
Contudo, de tal modo e com tal insistência o assediei que,
finalmente, um dia, deixando transparecer o esforço que custa tomar uma
resolução difícil e muito reprimida, subitamente me disse: «Pois bem, vais
saber o que me aconteceu, mas exijo que, por tudo o que te seja mais sagrado,
não o contes a ninguém enquanto eu não tiver voltado a morrer.» Prometi-lho com
toda a solenidade e levou-me à sua sala de estudo, onde nos fechámos.
Depois da sua transformação, eu não voltara a entrar naquela
divisão. Nada fora modificado, embora agora me parecesse mais em consonância
com o dono. Por momentos pensei que fora aquela sua salinha preferida que o
transformara de forma tão surpreendente. A sua velha e ampla poltrona de couro,
com os seus grandes braços, pareceu-me assumir um novo sentido. Estava a
examiná-la quando Emilio, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, me
disse, apontando o cadeirão:
- Foi ali que tudo aconteceu.
Olhei-o sem perceber.
Indicou-me que me sentasse na sua frente, numa cadeira que
estava do outro lado da sua pequena secretária de trabalho, acomodou-se no seu
cadeirão e começou a tremer. Eu não sabia o que fazer. Por duas ou três vezes
tentou começar a falar e outras tantas foi obrigado a desistir. Estive quase a
propor-lhe que esquecesse a sua confissão, mas a curiosidade foi mais forte do
que a piedade; é sabido que a curiosidade é uma das coisas que mais contribuem
para a crueldade do homem. Permaneceu um momento com a cabeça entre as mãos e
os olhos baixos; sacudiu-se depois, como quem toma uma súbita decisão, e
começou:
- Bem, tu não vais acreditar numa palavra sequer do que te
vou contar, mas isso não interessa. Contando-to, libertar-me-ei de um grande
peso, e isso basta-me. – Não me lembro do que lhe respondi, e prosseguiu:
- Há coisa de um ano e meio, meses antes do mistério, caí
doente de terror. A doença não se me notava nada, nem tinha qualquer
manifestação exterior, embora me fizesse sofrer horrivelmente. Tudo me metia
medo e me parecia envolver numa atmosfera de terror. Pressentia vagos perigos.
Sentia permanentemente a invisível presença da morte, da verdadeira morte, ou seja,
do total aniquilamento. Acordado, ansiava porque chegasse a hora de me deitar
para dormir e, uma vez na cama, atacava-me o temor de que o sono se apossasse
de mim para sempre. Era uma vida insuportável, terrivelmente insuportável. E
nem sequer me sentia com força de vontade para me suicidar, coisa que, pensava
eu na altura, seria uma solução. Cheguei a temer pelo meu juízo…
- E por que não consultaste um especialista? – perguntei só
para dizer alguma coisa.
- Tinha medo disso, como tinha de tudo. E este medo foi
crescendo de tal modo, que cheguei ao ponto de passar dias inteiros neste
quarto e neste cadeirão onde agora estou sentado, com a porta fechada, e
olhando para trás a cada momento. Tinha a certeza de que a situação não podia
prolongar-se e que se aproximava uma catástrofe ou lá o que fosse. E, com
efeito, aconteceu.
Neste ponto, deteve-se por momentos, parecendo hesitar:
- Não te admires de eu hesitar – prosseguiu – porque aquilo
que vais ouvir nunca o disse sequer a mim próprio. O medo era já algo que me
oprimia por todos os lados, que me punha um nó na garganta, ameaçando fazer
estoirar o coração e a cabeça. Chegou um dia, em sete de Setembro, em que
acordei no paroxismo do terror; o corpo e o espírito entorpecidos. Preparei-me
para morrer de medo. Como todos os dias, fechei-me aqui, sentei-me onde agora
estou sentado e comecei a invocar a morte. E, como é natural, ela chegou –
Notando o meu olhar, acrescentou tristemente: – Sim, já sei o que pensas, mas
não me importo. – E prosseguiu: – Estando aqui sentado, com a cabeça entre as
mãos e os olhos fixos num ponto impreciso, para além da superfície desta
secretária, senti que a porta era aberta e que um homem entrava cautelosamente.
Não quis erguer os olhos. Ouvia as batidas do coração, mal conseguia respirar.
O homem deteve-se e ficou aí, por detrás dessa cadeira onde estás sentado, de
pé e, sem dúvida, fitando-me. Passado um bocado, decidi-me a erguer os olhos e
a vê-lo. O que então me percorreu foi indescritível; não existe para o exprimir
nenhuma palavra na língua dos homens que morrem apenas uma vez. Quem estava
ali, de pé, diante de mim, era eu, eu mesmo, pelo menos em imagem. Imagina que
estando diante de um espelho, a imagem que de ti nele se reflecte, se solta,
ganha corpo e te cai em cima…
- Sim, uma alucinação… – murmurei – Disso já falaremos –
disse, e continuou:
- Mas a imagem do espelho ocupa o lugar onde estás e segue
os teus movimentos, enquanto aquele meu eu de fora estava de pé, enquanto o eu
de dentro, permanecia sentado. Por fim, o outro sentou-se também, onde tu te
sentas, colocou os dedos sobre o tampo da secretária, como tu os tens, e ficou
a olhar-me, como tu agora me olhas.
Não consegui reprimir um estremecimento ao ouvir isto e ele,
tristemente, disse-me:
- Não, não tenhas tu medo também; eu sou pacífico. – E
continuou:
- Estivemos assim por um momento, olhando-nos mutuamente nos
olhos, quer dizer, estive um momento olhando-me nos olhos. O terror
transformara-se noutra coisa muito estranha e que não sou capaz de te definir;
era o cúmulo do desespero resignado. Ao cabo de pouco tempo senti que o chão me
desaparecia sob os pés, que o cadeirão se dissolvia, que o ar se rarefazia,
tudo o que o meu olhar abrangia, incluindo o outro eu, se iam esfumando, e ao
ouvir o outro murmurar muito baixinho e com os lábios fechados: «Emilio.
Emilio», senti a morte. E morri.
Não sabia o que fazer ao ouvi-lo dizer isto. Senti a
tentação de fugir, mas a curiosidade venceu o meu medo. E ele continuou:
- Quando, pouco tempo depois, voltei a mim, quer dizer,
quando, pouco tempo depois, voltei ao outro, quer dizer, quando ressuscitei,
encontrei-me sentado aí, onde te encontras agora sentado e onde o outro se
sentara antes, com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça entre as palmas das
mãos, olhando-me a mim mesmo, que estava onde agora estou. A minha consciência,
o meu espírito, passara de um para o outro, do corpo primitivo para a sua
exacta reprodução. E vi-me, ou vi o meu anterior corpo, lívido e rígido, quer
dizer, morto. Assistira à minha própria morte. E limpara-se-me a alma daquele
estranho terror. Estava triste, muito triste, abismalmente triste, mas sereno e
sem medo de nada. Compreendi que teria de fazer alguma coisa; não podia ficar
assim, com aquele cadáver do meu passado. Com toda a tranquilidade reflecti
sobre o que me convinha fazer. Levantei-me dessa cadeira, e tomando o meu
pulso, quer dizer, tomando o pulso ao outro, convenci-me de que já não vivia.
Saí do escritório, deixando-o aqui encerrado, desci ao quintal e, sob qualquer
pretexto, comecei a abrir uma grande cova. E bem sabes como sempre gosteis de
fazer exercício no quintal. Dispensei os criados e esperei pela noite. E quando
a noite chegou, carreguei o meu cadáver às costas e enterrei-o na cova. O pobre
cão olhava-me com olhos de terror, mas de terror humano; era, pois, o seu olhar
um olhar humano. Afaguei-o, dizendo-lhe: não compreendemos nada do que se passa
amigo, e no fundo isto não é mais misterioso do que outra coisa qualquer…
- Parece-me uma reflexão demasiado filosófica para ser
dirigida a um cão – disse-lhe.
- Porquê? – perguntou – ou julgas que a filosofia humana é
mais profunda do que a canina?
- Julgo é que não entenderia nada.
- Nem tu, e não és cão!
- Homem, claro que entendo.
- Claro, e julgas-me louco… – e vendo que me calava,
acrescentou:
- Agradeço-te esse silêncio. Nada detesto mais do que a
hipocrisia. E quanto a isso das alucinações, devo dizer-te que tudo o que
apreendemos mais não são do que alucinações, todas as nossas impressões. A
diferença é de ordem prática. Se caminhas por um deserto, consumido pela sede e
de repente ouves o murmúrio da água de uma fonte e vês a água, tudo isso não
passa de uma alucinação. Mas se nela mergulhas a boca e bebes e a sede se apaga,
chamas a esta alucinação uma impressão verdadeira, de realidade. O que
significa que o valor das nossas percepções se mede pelo seu efeito prático. E
pelo seu efeito prático, efeito que pudeste observar por ti mesmo, é segundo
calculo o que aqui me sucedeu e acabo de te contar. Porque vês bem que eu,
sendo o mesmo, sou, no entanto, outro.
- Isso é evidente…
- Desde então, para mim, as coisas continuam a ser as
mesmas, mas vejo-as de outra maneira, com outro sentimento. É como se o tom, o
timbre, de tudo tivesse mudado. Vós julgais que fui eu quem mudou, a mim
parece-me que o que mudou foi todo o resto.
- Como caso de psicologia… murmurei.
- De psicologia? E de metafísica experimental.
- Experimental? – Exclamei.
- Acho que sim. Mas falta ainda uma coisa. Vem comigo.
- Saímos da salita e levou-me a um canto do quintal. Comecei
a tremer como se estivesse febril e ele, observando-me, disse:
- Estás a ver? Estás a ver? Também tu! Tem coragem,
racionalista!
Verifiquei então que transportava uma enxada consigo.
Utilizou-a para cavar, enquanto eu continuava pregado ao chão por um estranho
sentimento, misto de terror e de curiosidade. Ao cabo de um momento, ficaram a
descoberto a cabeça e parte dos ombros de um cadáver humano, quase um
esqueleto. Apontou-o com dedo, dizendo-me:
- Olha para mim!
Não sabia o que fazer ou o que dizer. Voltou a tapar a cova.
Eu não me mexia.
- O que se passa contigo, homem? – Disse, sacudindo-me o
braço.
Julguei despertar de um pesadelo. Olhei-o de uma forma que
devia ser o cúmulo do espanto e do terror – Sim – disse – agora pensas num
crime; é natural. Mas ouviste falar de alguém que tenha desaparecido sem que se
saiba do seu paradeiro? Achas possível haver um crime assim sem que se
descubra? Acreditas que sou um criminoso?
- Eu não acredito em nada – respondi-lhe.
- Agora sim, falaste verdade: tu não acreditas em nada, não
consegues explicar seja o que for, começando pelas coisas mais simples. Vós, os
que vos considerais sãos, não tendes outro instrumento que não seja a lógica e,
desse modo, viveis às escuras…
- Muito bem – interrompi-o – e tudo isto, o que significa?
- Lá começamos nós! Já estás à procura da solução ou da
moralidade da história. Pobres loucos! Pensais que o mundo é uma charada ou
hieróglifo cuja decifração é preciso encontrar. Não, homem, não; isto não tem
qualquer solução, não é uma adivinha, nem se trata de achar qualquer
simbolismo. Isto sucedeu tal e qual te contei e, se não queres acreditar, é lá
contigo.
Depois de Emilio me ter contado isto e até à sua morte, voltei
a vê-lo muito poucas vezes, pois evitava a sua presença. Metia-me medo.
Continuou com o seu feitio mudado, mas levando uma vida regular e sem dar o
menor motivo para que fosse considerado louco. A única coisa que fazia era
rir-se da lógica e da realidade. Morreu serenamente de pneumonia, com grande
coragem. Entre os seus papéis deixou um relato circunstanciado de tudo o que me
narrara e um tratado sobre a alucinação. Para nós foi sempre um mistério a
existência daquele cadáver no canto do quintal, existência que se pôde
comprovar.
No tratado a que faço referência, defendia, segundo me
disseram, que a muitas, a muitíssimas pessoas lhes acontecem durante a vida
coisas transcendentes, misteriosas, inexplicáveis, mas que não se atrevem a
revelar com o receio de ser tomados por loucos. «A lógica – diz – é uma
instituição social e aquilo a que se chama loucura uma coisa completamente
íntima e privada. Se pudéssemos ler as almas daqueles que nos rodeiam, veríamos
que vivemos rodeados por um mundo de mistérios tenebrosos, mas palpáveis.»
Miguel de Unamuno
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