«Gaiolas e Asas»
Conto de Rubem Alves
213- «GAIOLAS E ASAS»
Os pensamentos chegam-me de um modo inesperado, sob a forma
de aforismos. Fico feliz porque sei que, frequentemente, também Lichtenberg,
William Blake e Nietzsche eram atacados por eles. Digo atacados porque
eles surgem repentinamente, sem preparo, com a força de um raio. Os aforismos
são visões: fazem ver, sem explicar. Pois ontem, de repente, este aforismo
atacou-me: Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros
desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controlo.
Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados
têm sempre um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é
o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são
os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o
voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O
voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.
Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri,
conversando com professores em escolas. O que eles contam são relatos de horror
e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças… E eles,
timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia
determina que sejam feitas, como dar o programa, fazer avaliações… Ouvindo os
seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados,
garras à mostra – e os domadores com os seus chicotes, fazendo ameaças fracas
demais para a força dos tigres.
Sentir alegria ao sair de casa para ir à escola? Ter prazer
em ensinar? Amar os alunos? O sonho é livrar-se de tudo aquilo. Mas não podem.
A porta de ferro que fecha os tigres é a mesma porta que os fecha com os
tigres. Violento, o pássaro que luta contra os arames da gaiola? Ou violenta
será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes? Ou serão as
escolas que são violentas?
As escolas serão gaiolas? Vão falar-me da necessidade das
escolas dizendo que os adolescentes precisam de ser educados para melhorarem de
vida. De acordo. É preciso que os adolescentes, que todos tenham uma boa
educação. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida melhor. Mas eu
pergunto: as nossas escolas estão a dar uma boa educação? O que é uma boa
educação? O que os burocratas pressupõem sem pensar é que os alunos ficam com
uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E, para
testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas e avaliações, acrescidos
dos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.
Mas será mesmo? Será que a aprendizagem dos programas
oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação? Sabe o que é um
“dígrafo”? E conhece os usos da partícula “se”? E o nome das enzimas que entram
na digestão? E o sujeito da frase “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de
um povo heróico o brado retumbante”? Qual é a utilidade da palavra “mesóclise”?
Pobres professores, também engaiolados… São obrigados a ensinar o que os
programas mandam, sabendo que é inútil. Isso é um hábito velho das escolas.
Bruno Bettelheim relata a sua experiência com as escolas: Fui forçado (!)
a estudar o que os professores decidiam que eu deveria aprender. E aprender à
sua maneira.
O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a
vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A
inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver.
Nietzsche dizia que a inteligência era a ferramenta e o brinquedo do
corpo, Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender ferramentas,
aprender brinquedos. As ferramentas são conhecimentos que
nos permitem resolver os problemas vitais do dia-a-dia. Os brinquedos são
todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão
prazer e alegria à alma.
Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos,
está o resumo da educação. Ferramentas e brinquedos não são
gaiolas. São asas. As ferramentas permitem-me voar pelos caminhos do
mundo. Os brinquedos permitem-me voar pelos caminhos da alma. Quem
está a aprender ferramentas e brinquedos está a aprender
liberdade, não fica violento. Fica alegre, ao ver as asas crescer… Assim todo o
professor, ao ensinar, deveria perguntar-se: Isso que vou ensinar, é
ferramenta? É brinquedo? Se não for, é melhor pôr de parte. As
estatísticas oficiais anunciam o aumento das escolas e o aumento dos alunos
matriculados. Esses dados não me dizem nada. Não me dizem se as escolas são
gaiolas ou asas.
Mas eu sei que há professores que amam o voo dos seus
alunos.
Há esperança…
Rubem Alves
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