«Uma Rosa para Emily»
Conto de William Faulkner
197- «UMA ROSA PARA EMILY»
Quando Miss Emily Grierson morreu, toda a nossa cidade
compareceu ao enterro: os homens em atenção a essa espécie de carinho
respeitoso que se tem por um monumento tombado; as mulheres movidas pela
curiosidade de ver o interior de sua casa, onde ninguém entrara nos últimos dez
anos, exceto um velho negro, ao mesmo tempo cozinheiro e jardineiro.
Era um casarão quadrado, de madeira, outrora branco,
decorado de cúpulas, de flechas, de balcões, no estilo pesadamente frívolo da
época de 1870, situado na rua que já tinha sido a mais distinta da cidade. Mas
as garagens e as debulhadoras de algodão, multiplicando-se em derredor,
acabaram por fazer desaparecer até os nomes augustos daquele bairro. A casa de
Miss Emily era a única, levantando sua decrepitude teimosa e faceira acima dos
vagões de algodão e das bombas de gasolina. Emily tinha ido juntar-se aos
representantes daqueles nomes augustos, no cemitério adormecido sob os cedros,
onde jaziam entre os túmulos enfileirados e anônimos, dos soldados da União e
dos Confederados mortos no campo de batalha de Jefferson.
Viva, Miss Emily fora uma ‘tradição, um dever e um
aborrecimento: espécie de obrigação hereditária, pesando sobre a cidade desde o
dia em que, em 1894, o Coronel Sartóris (o prefeito que baixou o decreto
proibindo às negras saírem à rua sem avental) a isentara do pagamento de
impostos, isenção definitiva, que datava da morte de seu pai. Isto não quer
dizer que Miss Emily aceitasse a caridade. O Coronel Sartóris inventara a
complicada história de um empréstimo em dinheiro, feito pelo pai de Miss Emily
à cidade e que a cidade, por conveniência própria, preferia reembolsar dessa
maneira. Só um homem da geração e com as ideias do Coronel Sartóris poderia ter
imaginado semelhante coisa, e só uma mulher poderia ter acreditado.
Quando a geração seguinte, com suas ideias modernas, deu,
por sua vez, prefeitos e intendentes municipais, essa concessão provocou alguns
descontentamentos. No primeiro dia do ano, dirigiram a Miss Emily uma
notificação de impostos. Fevereiro chegou, sem trazer resposta. Enviaram-lhe
uma carta oficial, pedindo-lhe para passar, quando pudesse, no gabinete do
delegado. Na semana seguinte, o próprio prefeito lhe escreveu, oferecendo-se
para ir, em pessoa, à sua casa, ou para mandar buscá-la no seu carro
particular. Recebeu, como resposta, uma folha de papel de feitio arcaico,
escrita com tinta desbotada, numa letra miúda e fluente, comunicando-lhe que
não saía mais de casa. A notificação de pagamento de imposto vinha inclusa, sem
comentários.
O Conselho Municipal reuniu-se em sessão extraordinária. Uma
delegação dirigiu-se à sua casa e bateu naquela porta que nenhum visitante
transpusera desde que, oito ou dez anos antes, Miss Emily deixara de dar lições
de pintura em porcelana. Os membros da delegação foram introduzidos num saguão
escuro, de onde uma escada se projetava para as sombras ainda mais que espessas
do andar superior. Havia em tudo um cheiro de poeira, de guardado, de coisas
que nunca são usadas -um cheiro de mofo e humidade. O negro conduziu-os ao
salão, de mobiliário pesado, forrado de couro. Quando o negro abriu as cortinas
de uma das janelas, viram que o couro estava estalado, descascando e, ao se
sentarem, uma nuvem leve de pó subiu-lhe preguiçosamente em volta das coxas e
se espalhou em círculos vagarosos, desenrolando-se, desagregada, na única
réstia de sol. Num cavalete de moldura dourada, perto da lareira, via-se o
retrato a carvão do pai de Miss Emily.
Levantaram-se à sua entrada. Era uma mulherzinha pequena e
gorda, vestida de preto, com uma fina corrente de ouro descendo-lhe do pescoço
até a cintura, onde desaparecia no cós da saia. Tinha a ossatura pequena e
delicada; talvez, por isso, o que em outra pessoa seria apenas gordura,
parecia, nela, obesidade. Dava a impressão de estar inchada, como um cadáver
muito tempo submerso numa água estagnada; tinha, mesmo, de um afogado, a carne
lívida e balofa. Seus olhos, perdidos nas intumescências da sua face, lembravam
dois pedacinhos de carvão enfiados numa bola de massa e iam de um rosto a
outro, enquanto os visitantes expunham o caso.
Não mandou que sentassem. Conservou-se, apenas, em pé no limiar
da sala, e esperou tranquilamente que o porta-voz se interrompesse,
balbuciando. Então, puderam ouvir o tic-tac do relógio invisível, preso na
ponta da sua corrente de ouro.
Sua voz era seca e fria:
- Não tenho impostos a pagar em Jefferson. O Corenel Sartóris me explicou isso.
Talvez um dos senhores possa consultar os arquivos da cidade e dar satisfações
aos demais.
- Mas nós o fizemos. Nós somos as autoridades no município, Miss Emily. A
senhora não recebeu a notificação assinada pelo delegado?
- Sim, recebi um papel – disse Miss Emily. – Talvez ele se considere realmente
o delegado… Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
- Mas não há, nos livros, nada que o possa provar. Veja a senhora… É preciso
que nós…
- Procurem o Coronel Sartóris. Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
- Mas, Miss Emily -
- Procurem o Coronel Sartóris. (Havia quase dez anos que o Coronel Sartóris
estava morto) – Não tenho impostos a pagar em Jefferson. Tobe! – O negro
apareceu. – Acompanha estes cavalheiros.
Assim
ela os venceu irremediavelmente, como já lhes vencera os pais, trinta anos
antes, a respeito do cheiro. Isso aconteceu dois anos após a morte do seu pai,
e quase em seguida à ocasião em que o namorado – aquele mesmo que nós
pensávamos iria se casar com ela – a abandonou. Aquela morte e o abandono do
namorado fizeram que ela depois pouco saísse de casa. Algumas senhoras tiveram
a temeridade de ir visitá-la, mas não foram recebidas e, naquela casa, o único
sinal de vida era o negro – ainda moço, então – que entrava e saía com um cesto
de compras.- Como se um homem – seja quem for! – pudesse conservar limpa uma cozinha! –
diziam as senhoras. Assim, ninguém se surpreendeu quando se começou a sentir o
cheiro. Foi um novo laço que se estendeu entre a gente grosseira e prolífica do
bairro e os grandes e poderosos Grierson.
Uma mulher, sua vizinha, foi queixar-se ao prefeito, Juiz
Stevens, que contava, então, oitenta anos.
- Mas que quer a senhora que eu faça? – perguntou ele,
- Ora, que ela acabe com isso – disse a mulher. Não existe lei?
- Estou certo de que não será necessário – afirmou o Juiz Stevens.
Provavelmente, é só uma cobra ou um rato que o negro matou no quintal. Amanhã
falarei com ele a esse respeito.
No dia seguinte, recebeu duas novas queixas; uma partiu de um homem, que
apresentou uma súplica tímida.
- Nós precisamos, realmente, fazer alguma coisa nesse caso, sr. Juiz. Eu seria
a última pessoa neste mundo capaz de incomodar Miss Emily, mas precisamos fazer
alguma coisa.
Nessa mesma noite, reuniu-se o Conselho Municipal: três
barbas grisalhas e um rapaz moço, membro da nova geração.
- A coisa é muito simples – disse o moço. – Mandem-lhe dizer para limpar a
casa. Dêem-lhe um certo prazo para obedecer e, se ela não…
- Deus me livre, senhor! – exclamou o Juiz Stevens. Quer então dizer a uma
senhora, nas bochechas, que ela cheira mal?
Assim, na noite
seguinte, de madrugada, quatro homens atravessaram o gramado do jardim de Miss
Emily e, como assaltantes, rondaram a casa, farejando os alicerces de tijolos e
os respiradouros do porão, enquanto um deles, com um saco nos ombros, fazia,
com regularidade, o gesto do semeador. Arrombaram a porta da adega, que
salpicaram de cal, assim como todas as dependências. Quando, de volta, atravessaram
o gramado, uma janela, até então sombria, iluminou-se de repente e viram Miss
Emily sentada à contraluz, ereta, rígida, imóvel como um ídolo. Atravessaram em
silêncio o gramado, metendo-se por entre as sombras das acácias que margeavam a
rua. Depois de uma ou duas semanas, o cheiro desapareceu.
Isso foi quando as pessoas começaram realmente a ter pena
dela. A gente de nossa cidade, que se lembrava de Lady Wyatt, sua tia-avó, que
acabara louca, achava que os Grierson se julgavam muito mais importantes do que
eram na realidade. Nenhum dos rapazes da cidade fora jamais considerado à
altura de Miss Emily. Nós os imaginávamos muitas vezes como um quadro: ao
fundo, Miss Emily, esguia figura vestida de branco; no primeiro plano, a
silhueta do seu pai, virando-lhe as costas, com as pernas abertas, um chicote
na mão; ambos, enquadrados pelos caixilhos da porta escancarada. Assim, quando
ela chegou aos trinta anos ainda solteira, não posso dizer que isso tenha
causado uma verdadeira alegria, mas nós, os rapazes, nos sentimos vingados;
mesmo com os casos de loucura na família, ela não teria virado as costas a
todas as oportunidades, se essas se tivessem verdadeiramente materializado.
Morto o pai, correu o boato de que só lhe tinha ficado a
casa de herança, o que, de certo modo, alegrou todo mundo. Até que enfim,
podiam apiedar-se de Miss Emily. Sozinha e na pobreza, iria humanizar-se.
Agora, ela também conheceria a velha satisfação e o velho desespero de um
vintém a mais ou de um vintém a menos.
No dia seguinte ao da morte do velho, as senhoras da cidade
preparavam-me para ir à sua casa, apresentar-lhe os pêsames, conforme o
costume. Miss Emily recebeu-as no limiar da porta, vestida como nos outros
dias, e sem a menor marca de tristeza ou sofrimento na expressão. Disse-lhes
que o pai não tinha morrido. Repetiu essas palavras durante três dias, quando
os pastores e os médicos iam vê-la, tentando persuadi-la a deixar dispor do
cadáver. Mas, no momento em que estavam resolvidos a recorrer à Lei e à força,
ela cedeu, e enterraram-lhe o pai a toda pressa.
Não se disse, então, que estava louca. Pensamos que tinha
agido como devia. Lembrávamo-nos de todos os moços que seu pai afastara, e
sabíamos que, achando-se sem nada, ela deveria agarrar-se àquele que a
despojara de tudo, como em geral acontece.
Esteve muito tempo doente. Quando tornamos a vê-la, tinha os cabelos cortados,
o que a fazia parecer uma menina e lhe dava uma vaga semelhança com os anjos
dos vitrais de igreja – uma mistura de trágico e sereno.
A cidade acabava justamente de firmar o contrato para
pavimentação das calçadas e, no verão que seguiu a morte do seu pai, começaram
os trabalhos. A companhia construtora trouxe negros, mulas e máquinas, e um
contramestre chamado Homer Barron, um “yankee”, homem grande, moreno e
decidido, com um vozeirão enorme e olhos mais claros do que a pele do rosto. Os
garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo gritar com os negros, e para ouvir
os negros cantando em compasso, enquanto erguiam e abaixavam a picareta. Em
breve, o contramestre conhecia toda a gente da cidade. Cada vez que se ouviam
ruidosas gargalhadas na praça, podia-se jurar que Homer Barron estava no centro
do grupo. Não tardamos a avistá-lo, nos domingos à tarde, passeando com Miss
Emily na carriola de aluguel, que tinha rodas amarelas e era puxada por uma
parelha de cavalos baios.
A princípio, todos ficaram satisfeitos de ver que Miss Emily
tinha agora um interesse na vida. As senhoras andavam dizendo: “Naturalmente,
nunca uma Grierson tomará a sério um nortista, um assalariado.”
Mas havia outras pessoas, as mais velhas, que achavam que
nem mesmo o desgosto deveria fazer que uma verdadeira senhora se esquecesse de
que “noblesse oblige”. (Sem no entanto, empregar essa expressão: Noblesse
oblige). Diziam, apenas: “Pobre Emily. Os parentes deviam procurá-la.”
Tinha parentes em Alabama, mas, alguns anos antes, o pai
rompera com eles por causa da herança da velha Lady Wyatt, a louca, e não havia
mais relações entre as duas famílias. Nem sequer se tinham feito representar no
enterro.
E, mal a gente velha exclamou “Pobre Emíly”, os mexericos
começaram: “Vocês imaginam que, realmente. . .” diziam uns para os outros. –
“Mas nem há dúvida. Porque, a não ser isso. . ” tudo sussurrado atrás das mãos
no amarrotado farfalhar de sedas e cetins por detrás das janelas fechadas ao
sol das tardes de domingo, enquanto a parelha de cavalos baios passava num leve
e apressado clop-clop-clop. – “Pobre Emily!”
Ela, porém, erguia a cabeça bem alto, mesmo quando
pensávamos que tinha decaído. Parecia, mais do que nunca, exigir que se
reconhecesse sua dignidade de última dos Grierson, como se fosse necessário
aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais profundamente a sua
impenetrabilidade. Tal como no dia em que comprou o veneno para ratos, o
arsênico. Isso aconteceu um ano depois de terem começado a dizer:
“Pobre Emily”, e quando as duas primas estavam hospedadas em
sua casa.
- Quero comprar veneno – disse ao farmacêutico. Contava,
então, mais de trinta anos; era ainda delgada, embora estivesse mais magra do
que de costume, com os olhos negros, altivos e frios num rosto cuja pele se
repuxava na altura das têmporas e em volta das pálpebras, como se imaginava que
deveria ser o rosto de um guardião de farol. – Quero comprar veneno.
- Pois não, Míss Emily. Que espécie de veneno? para ratos ou
qualquer coisa assim? Recomen…
- Quero o que o senhor tiver de melhor. Não importa qual
seja.
O farmacêutico citou alguns:
- Matariam até mesmo um elefante. Mas o que a senhora quer
e…
- Arsénico – disse ela. – É bom?
- É… arsénico? Pois sim, senhora. Mas o que a senhora quer
….
- Eu quero arsénico.
- Pois, naturalmente – disse ele. – Se é isso que a senhora
quer. Porém, a lei determina que a senhora declare o fim que dará ao veneno.
Miss Emily limitou-se a fitá-lo, com a cabeça pendida para
melhor fixar os olhos nos olhos dele, até forçá-lo a desviar o olhar e a ir
buscar o arsénico, que embrulhou. O caixeiro negro que fazia entregas
trouxe-lhe o pacote, pois o farmacêutico não tornou a aparecer. Ao chegar em
casa, tirou o papel; na tampa da caixa, debaixo da caveira e os dois ossos,
estava escrito: “Para ratos”.
Assim, no dia seguinte, nós dizíamos: “Ela vai suicidar-se”,
e achávamos que era a melhor solução. Quando começáramos a vê-la com Homer
Barrou, tínhamos dito: “Vai casar-se com ele”. Depois, dizíamos: “Ela ainda
acabará por persuadi-lo”, porque o próprio Homer observava – gostava da
companhia dos homens e sabia-se que bebia com os rapazes no Elk’s Club – que
não era feito para casamento. Mais tarde, dissemos: “Pobre Emily”, por detrás
das venezianas, quando ambos passavam, nas tardes de domingo, na carriola
vistosa, Miss Emily de cabeça erguida e Homer Barrou com o chapéu de lado e um
charuto entre os dentes, segurando as rédeas e o chicote nas luvas amarelas.
Então, algumas senhoras começaram a declarar que aquilo era
uma vergonha para a cidade e um mau exemplo para a gente moça. Os homens não
ousavam intervir, mas, finalmente, as mulheres forçaram o pastor batista – a
gente de Miss Emily era episcopal – a ir procurá-la. O pastor negou-se sempre a
contar o que acontecera durante a entrevista e recusou-se a voltar à sua casa.
No domingo seguinte, saíram juntos novamente e, no outro dia, a mulher do
ministro escreveu aos parentes de Miss Emily, em Alabama.
Dessa forma, ela teve pessoas de seu sangue outra vez
debaixo de seu teto e nós ficamos todos à espera dos acontecimentos. A
princípio, nada aconteceu. Depois, ficamos convencidos de que iam se casar.
Soubemos que Miss Emily fora à joalheria e encomendara um jogo de toucador para
homem, todo de prata, com as iniciais II. B. gravadas em cada peça. Dois dias
mais tarde, fomos informados de que comprara um enxoval masculino completo,
inclusive uma camisola de dormir, e dissemos: “Estão casados”. E ficamos
contentes, porque as duas primas eram mais Grierson ainda do que Miss Emily
jamais o fora.
Não tivemos grande surpresa quando, terminado o calçamento
das ruas, Homer Barron partiu. Sentimo-nos um pouco decepcionados por não ter
havido nenhuma manifestação pública de regozijo, mas julgamos que se tivesse
afastado para preparar a ida de Miss Emily, ou para lhe dar a oportunidade de
se livrar das primas. (Por essa época formáramos uma verdadeira cabala, e
éramos todos aliados de Miss Emily no sentido de ajudá-la a alijar as primas).
O que é certo é que elas partiram ao fim de outra semana. E, como esperávamos,
no terceiro dia após essa partida, Homer Barron estava de volta à cidade. Os
vizinhos viram o negro abrir-lhe a porta da cozinha, uma tarde ao escurecer.
Foi essa a última vez que vimos Homer Barron. E, durante
algum tempo, não tornamos também a ver Miss Emily. O negro ia e vinha com a
cesta das compras, mas a porta da entrada continuava fechada. Uma vez ou outra
conseguimos avistá-la à janela por alguns instantes, como naquela noite em que
os homens foram à sua casa espalhar a cal; durante mais de seis meses, porém,
ela não apareceu nas ruas. Compreendemos que isso também era de esperar; como
se aquele aspecto do caráter do seu pai, que tantas vezes constrangera sua vida
de mulher, fosse virulento e furioso demais para morrer assim.
Quando a vimos novamente, Miss Emily tinha engordado muito e
seus cabelos estavam ficando grisalhos. Nos anos seguintes, foram ficando cada
vez mais grisalhos, até o momento em que, tendo adquirido um tom
cinzento-de-aço, sua cabeleira não mudou mais de cor. Até ao dia da sua morte,
aos setenta e quatro anos, aqueles cabelos conservavam ainda esse vigoroso tom
cinzento-de-aço, como os cabelos de um homem ativo.
Desde aquela época, sua porta ficara fechada, exceto no
decorrer de um período de seis ou sete anos, quando ela, quarentona, dava aulas
de pintura em porcelana. Instalara, num aposento do andar térreo, o atelier
onde as filhas e netas dos contemporâneos do Coronel Sartóris lhe eram enviadas
com a mesma regularidade e dentro do mesmo espírito com que as mandavam à
igreja, nos domingos, munidas de uma moedinha de vinte centavos para a hora da
coleta. Nesse ínterim, Miss Emily se vira dispensada do pagamento de impostos.
A nova geração tornou-se, então, a espinha dorsal e a alma
da cidade, as alunas cresceram e dispersaram-se, e não lhe mandaram as filhas
com as caixinhas de tinta, os aborrecidos pincéis e os modelos recortados das
revistas ilustradas femininas. A porta fechou-se sobre a última aluna e ficou
fechada desde então. Quando a cidade adotou a distribuição gratuita do correio,
Miss Emily foi a única pessoa que se negou a consentir que fixassem um número
de metal acima da sua porta e uma caixa postal ao lado. Não houve argumento que
a convencesse.
Dias, meses e anos, vimos o negro, cada vez mais grisalho e
curvado, entrando e saindo com a cesta de compras. Anualmente, em dezembro,
mandavam-lhe a declaração de impostos, que o correio devolvia na semana
seguinte, com a nota de não haver sido reclamada. Uma vez ou outra, nós a
avistávamos diante da janela do andar térreo – tinha, evidentemente, fechado
todo o andar superior da casa – semelhante ao busto esculpido de um ídolo no
seu nicho, e nunca chegamos a saber se estava olhando para nós, ou se nem
sequer nos via. E assim passou ela de geração para geração – querida, inevitável,
impenetrável, tranquila e perversa.
E, então, ela morreu. Caiu doente no seu casarão cheio de
sombras e de pó, tendo como único auxílio o negro caduco. Nem ao menos
soubéramos que estava doente, pois havia já muito tempo que desistíramos de
arrancar qualquer informação ao negro. Não falava com pessoa alguma, talvez nem
mesmo com ela; sua voz se tornara áspera e rouquenha como uma voz que não serve
nunca.
Morreu num dos quartos do andar térreo, numa cama de
nogueira maciça com cortinados, a cabeça grisalha erguida por um travesseiro
amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol.
O negro encontrou a primeira das senhoras na porta da
frente; deixou-as entrar, com suas vozes sussurradas e sibilantes, com seus
olhares rápidos, furtivos e curiosos, e depois desapareceu. Meteu-se pela casa
a dentro, atravessou-a toda, saiu pelos fundos e sumiu para sempre.
A duas primas não tardaram a chegar. Fizeram o enterro no
segundo dia. A cidade em peso compareceu para ver Miss Emily coberta por um
montão de flores compradas, o retrato, a carvão, de seu pai profundamente
pensativo, acima do caixão, cercado pelas senhoras sibilantes e macabras. No
saguão e no gramado, homens, muito velhos – alguns nos uniformes de
confederados muito bem escovadinhos – falavam de Miss Emily como se fosse uma
das suas contemporâneas, imaginando que tinham dançado com ela, e até mesmo,
talvez, que a tinham namorado, confundindo o tempo e a progressão matemática,
como fazem os velhos, para os quais o passado não é uma estrada que se vai
encurtando, porém uma vasta planície nunca atingida pelo inverno, dividida para
eles, agora, pelo estreito gargalo da ampulheta dos últimos dez anos.
Nós todos já sabíamos da existência, naquela região, do
andar superior, onde ninguém pisara há quarenta anos, de um quarto fechado que
seria preciso arrombar. Esperamos que Miss Emily estivesse docemente enterrada,
antes de forçá-lo.
A violência com que pusemos a porta abaixo pareceu encher o
quarto de uma poeira penetrante. Era como se uma mortalha, tênue e acre, se
estendesse sobre todas as coisas daquele quarto, mobiliado e enfeitado para
urna noite de núpcias: sobre as desbotadas cortinas de pesada seda cor-de-rosa,
sobre os quebra. Luzes rosados das lâmpadas, sobre a penteadeira, sobre os
delicados objetos de cristal, sobre as peças do aparelho de toucador para
homem, com seus dorsos de prata embaciados, tão embaciados que nem se
distinguiam os monogramas escurecidos.
Entre os pertences do toucador, estavam jogados um colarinho
e uma gravata, como se tivessem acabado de tirá-los naquele momento; quando os
levantamos, deixaram na superfície uma pálida meia lua traçada na poeira. O
terno de roupa estava dobrado cuidadosamente numa cadeira, debaixo da qual se
viam os dois sapatos mudos e as meias largadas no chão.
E o homem estava deitado na cama.
Durante muito tempo, ali ficamos, imóveis, olhando para o
seu ríctus profundo e descarnado, O corpo devia ter, a principio, repousado na
atitude de carícia, abraçado a outro corpo, mas agora o grande sono que
sobrevive ao amor, o grande sono que vence até mesmo as carícias do amor,
dominara-o afinal. O que restava dele, em decomposição dentro do que restava de
sua camisola de dormir, tornara-se inseparável do leito em que jazia; e sobre
ele, assim como sobre o travesseiro vazio ao seu lado, estendera-se aquela
camada espessa de paciente e obstinada poeira.
Notamos, então, que no segundo travesseiro havia a marca
funda de uma cabeça. Um de nós encontrou qualquer coisa caída sobre esse
travesseiro e, debruçando-se, enquanto a leve, impalpável poeira acre e seca,
nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de cabelo de um tom
cinzento-de-aço.
William Faulkner
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