«A Última Visita», por Euclides da Cunha.
«A Última Visita»
Euclides da Cunha e Machado de Assis
235- «A ÚLTIMA VISITA»
(O artigo abaixo, a respeito da morte de Machado de Assis,
foi publicado por Euclides da Cunha em 30 de Setembro de 1908,
no «Jornal do Comércio». In: «Machado de Assis: um génio brasileiro»,
de Daniel Piza, 2005.)
Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na
vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o
desenlace de sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do
querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregara no colo,
hoje nobilíssimas mães de família – comentavam-lhe os lances encantadores da
vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados em
álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos
olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a
saudade glorificava uma existência, antes da morte.
No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados,
também aparentemente tranqüilos.
E compreendia-se desde logo a antilogia de coração tão ao
parecer tranquilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria
serenidade incomparável e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se
o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de
Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento,
apressava-se a pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro
gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbrava em
sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não
nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de
sentir e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez
embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranquila e
soberana.
E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava
gentilmente heróico na morte...
Mas aquela placidez aguda despertava na sala principal, onde
se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo,
Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um
amargo desapontamento.
De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto
viveu outras vidas, assimilando-as através de análises subtilíssimas, para
no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas – que uma vida
de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo
limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis
só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade
inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na
normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se
cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa...
Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo
desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16
a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário
dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não
conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o
encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em
estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa ideia,
não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem,
portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias
certas do seu estado.
E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao
quarto do doente.
Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do
mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por
algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa
criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração
bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio
segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele
menino foi o maior homem de sua Terra.
Ele saiu – e houve na sala há pouco invadida de desalentos
uma transfiguração.
No fastígio de certos estados morais concretizaram-se
às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a impressão visual
da Posteridade.
Euclides da Cunha
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