quarta-feira, 20 de agosto de 2014

OUTROS CONTOS

«O Desejo de Ser Inútil», por Hugo Pratt.

«O Desejo de Ser Inútil»
«Corto Maltese e Tebocua», por Hugo Pratt

242- «O DESEJO DE SER INÚTIL»
[Excerto]

“Descolamos, imediatamente, e o meu companheiro de viagem leva-me então aos índios Chavantes – no Brasil escreve-se «Xavantes» –, que me descreveu como boa gente, muito simpáticos. Mas eles são realmente simpáticos, e aprendi a viver com eles. Comunico mediante desenhos.

Felizmente, tinha comigo o meu material de desenho… Viam-me trabalhar e ficavam fascinados com a minha mão, faziam-me desenhar quase sem parar. Como o americano nunca mais vinha buscar-me, ao cabo de alguns dias integraram-me numa família. Havia tantas famílias quantas as mulheres. Os homens eram mais numerosos e, consequentemente, os Chavantes praticavam a poliandria. Cada mulher tinha quatro maridos. Foi assim que na Amazónia eu tive um filho, Tebocua. Só o soube dois anos mais tarde, em 1966, aquando de uma nova estadia no Brasil. Alguém que fora ver os Chavantes contara aos meus amigos Lipszyc e Lisboa que nascera um menino mestiço, e que os índios diziam ser o filho de Hugo – de “Uca”, como eles me chamavam.

Para compreender bem os Chavantes, eu comecei a organizar um pequeno dicionário da sua língua. E até fiz parte das suas sociedades secretas! Os homens reuniam-se entre eles e era suposto ocuparem-se de magia, mas na realidade ficavam sentados, a fumar. Quando lhes perguntei que magia havia afinal naquilo, deram-me a entender que os ritos mágicos eram um mero pretexto para ficarem sossegados, entre homens, longe das mulheres e das suas histórias. No fundo, era o mesmo princípio dos clubes da alta sociedade britânica: entre um guerreiro da tribo dos Chavantes e um coronel do exército das Índias, não havia grande diferença.

Quanto a Tebocua, é hoje um belo jovem de vinte e cinco anos. É cor de chocolate com leite, com olhos verdes. Quando ri, leva a mão à boca, porque entre os Chavantes mostrar os dentes é sinal de agressividade. Eu propiciei-lhe a riqueza, levando-lhe uma lata de anzóis. Ele vende anzóis, e o negócio corre-lhe bem: a minha pequena prenda fez dele um dos homens mais importantes da tribo”.

Hugo Pratt

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