«Um Conto de Natal»
Ilustração de Danuta Wojciechowska
243- «UM CONTO DE NATAL»
A ideia de há muito que o andava a desassossegar. Depois dos
primeiros ensaios de auto-apoucamento, Valério conseguiu um primeiro grande
resultado: meter-se todo, todinho, numa das pernas (por sinal, a esquerda) do
par de calças de sarja que comprara nas Confecções Nilo por trezentos
convidativos escudos. Com voz-de-dentro-de-calça chamou a mulher:
Quinhas levou um susto ao dar com uma perna de calça
sustentando-se em pé sem, aparentemente, homem lá dentro. Logo se refez para
fingir que não era capaz de o encontrar:
- Mas onde é que se teria metido meu Lèrinho!
- Aqui, sua estúpida! – desabafou-abafou a voz de Valério.
Quinhas continuava a brincadeirinha apalpando a perna vazia
e bichanando:
- Lèrinho, Lèrinho!
Quando Valério, por fim, se libertou da perna da calça e
retomou o seu (natural) ascendente, trocaram prazenteiramente insultos como só
os casais muito unidos sabem trocar.
Quinhas seguira os exercícios de auto-apoucamento de
Valério. Este começara a enovelar-se pelos cantos da casa: passara de seguida
aos gavetões da cómoda e acabara por ser encontrado numa das gavetas da mesa da
cozinha. Dessa feita, Quinhas gritara. É que Valério saltara lá de dentro e
avantajara-se brandindo aos urros um facalhaz.
- Que horror, querido, pareces um cossaco! – dissera Quinhas
que, no autocarro dessa manhã, lera nas Selecções um artigo dum biólogo
americano sobre cossacos.
E, então, solenemente, como só os casais muito amigos sabem
fazer, combinaram logo ali que Valério, por mais apoucado e encafuado que
estivesse, não pregaria sustos daqueles à sua Quinhas. E beijocaram-se,
prazidos. Os exercícios de auto-apoucamento de Valério tinham um fim: preparar
a grande surpresa para o Necas, quando ele viesse a férias pelo Natal. E vai
daí – como o tempo corre! – o Necas veio. Valério considerou o filho com
apreensão. Valeria a pena a surpresa? Necas estava tão grande! Aquela sombra no
beiço, aquela voz do peito pontuada de estridulações…
- Ora, o Necas é ainda tão criança! – sossegou-o Quinhas.
Criança que era, o Necas só muito raramente acordava no meio
do sono com as movimentações tardias que naquela casa estavam a ser o teor
diário. Mas na véspera do Natal, o silêncio foi inesperadamente tão grande que
o Necas passou toda a noite numa excitação que nem te digo. Coisas de crianças,
coisas da quadra?
Ao levantar-se, pés nus, para ir ver o sapatinho, o Necas já
ia a bordo dos patins que a mãe lhe prometera. Quando deu com o pai, apoucado,
a acenar-lhe amigavelmente da amurada do sapato, Necas fugiu a procurar no
regaço de Quinhas a verdadeira dimensão do seu horror:
- Sa…Sa…Saiu-me o…o… o pai no sa…sa…sapato! – soluuuuçava o órfão de vivo. E a
mãe, ultrapassada pela reacção do Necas, consolava-o como ia podendo,
prometendo-lhe que o pai voltaria a crescer, a crescer.
Alexandre O’Neill
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