«Os Dons das Fadas»
Pintura de Camille Rose Garcia
253- «OS DONS DAS FADAS»
Realizava-se a grande reunião das fadas, a fim de procederem
à partilha dos dons entre todos os recém-nascidos das últimas vinte e quatro
horas.
Muito diferiam umas das outras, todas essas antigas e
fantasistas Irmãs do Destino, todas essas Mães estranhas da alegria e da dor:
umas tinham aparência sombria e rebarbativa, outras a tinham folgazã e
maliciosa; umas eram jovens, e sempre o haviam sido, outras eram velhas, e
também sempre o haviam sido.
Todos os pais que acreditam nas Fadas haviam comparecido,
cada qual trazendo nos braços o seu recém-nascido.
Os Dons, as Faculdades, os Bons Acasos, as Circunstâncias
Invencíveis, estavam amontoados ao lado do Tribunal, como os prémios sobre o
tablado, em dia de distribuição de prémios. O que havia de particular no caso é
que os Dons não eram a recompensa de um esforço, mas pelo contrário, uma graça
concedida àquele que ainda não vivera, uma graça capaz de determinar o seu
destino e de se tornar tanto a origem de sua desdita, quanto de sua felicidade.
As pobres Fadas estavam sobrecarregadas de trabalho, porque
era grande o número dos solicitantes, e o mundo intermediário colocado entre o
homem e Deus está submetido, tanto quanto nós, à lei terrível do Tempo e de sua
infinita posteridade, os Dias, as Horas, os Minutos, os Segundos.
Na realidade, elas estavam tão atordoadas quanto ministros
em dia de audiência, ou empregados do Estabelecimento de Penhores, quando um
dia de festa nacional autoriza as restituições sem pagamento. Acho mesmo que
olhavam, de vez em quando, para o ponteiro do relógio, com impaciência igual à
de juízes humanos que, por estarem em função desde cedo, não podem deixar de
sonhar com o jantar, a família e os queridos chinelos. Se, na justiça
sobrenatural, há um pouco de precipitação e de acaso, não nos admiremos que o
mesmo aconteça às vezes na justiça humana. Nós mesmos seríamos, em tal caso,
juízes injustos.
Dessarte foram cometidas, nesse dia, algumas tolices – que
poderíamos estranhar, se a prudência, e não a fantasia, fosse a característica
peculiar, eterna, das Fadas.
Assim o poder de atrair magneticamente a fortuna foi
concedido ao único herdeiro de uma família riquíssima que, não possuindo noção
alguma de caridade, como também nenhuma cobiça dos bens visíveis da terra,
devia encontrar-se, mais tarde, grandemente atrapalhado com seus milhões.
Assim foram concedidos o amor ao Belo e a Força Poética ao
filho de um triste pobretão, um cavouqueiro absolutamente incapaz quer de
favorecer os dotes, quer de prover às necessidades de sua lamentável progênie.
Esquecia-me de lhes dizer que a distribuição, em tais casos
solenes, não comporta apelação, e que nenhum dom pode ser recusado…
Todas as Fadas já se estavam levantando, julgando concluída
sua tarefa, porque não restava mais presente algum, munificência alguma para
atirar a toda aquela nulidade humana, quando um bom homem, um pobre e modesto
negociante, creio eu, ergueu-se e, agarrando por sua veste de vapores policrómicos
a Fada que lhe ficava mais próxima, exclamou:
- Oh! Senhora! está-nos esquecendo! Ainda falta meu pequeno!
Não quero ficar sem receber coisa alguma!
A Fada deveria ficar perplexa, porque não restava mais nada.
Todavia, lembrou-se ela a tempo de uma lei bastante
conhecida, embora raramente aplicada, no mundo sobrenatural, habitado pelas
deidades etéreas, amigas do homem, e muitas vezes forçadas a se adaptarem às
suas paixões, tais como as Fadas, os Gnomos, as Salamandras, as Sílfides, os
Silfos, os Nixos, os Ondinos e as Ondinas, – quero referir-me à lei que concede
às Fadas, em semelhante caso, isto é, no caso de os presentes se acabarem, a
faculdade de concederem mais um, suplementar e excepcional, sob condição, todavia,
de ela possuir imaginação bastante para criá-lo imediatamente.
Por isso a boa Fada respondeu, com uma segurança digna de
sua situação:
- Dou a teu filho… dou-lhe… o Dom de agradar!
- Mas agradar como? agradar? por que agradar? – perguntou
teimosamente o pequeno comerciante, que sem dúvida era um desses raciocinadores
tão comuns, incapazes de se elevarem até a lógica do absurdo.
- Porque sim! porque sim! – replicou a Fada, colérica,
voltando-lhe as costas; e, reunindo-se ao cortejo de suas companheiras,
dizia-lhes:
- Que acham desse francesinho vaidoso que tudo quer
compreender e que, havendo obtido para o filho o melhor quinhão, ainda ousa
interrogar e discutir o indiscutível?
Charles Baudelaire
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