«A Estante»
Conto de Ferreira Gullar
263- «A ESTANTE»
Naquele novo apartamento da rua Visconde de Pirajá pela
primeira vez teria um escritório para trabalhar. Não era um cómodo muito grande
mas dava para armar ali a minha tenda de reflexões e leitura: uma escrivaninha,
um sofá e os livros. Na parede da esquerda ficaria a grande e sonhada estante
que caberia todos os meus livros. Tratei de encomendá-la a seu Joaquim, um
marceneiro que tinha oficina na rua Garcia D’Avila com Barão da Torre.
O apartamento não ficava tão perto da oficina. Era quase em
frente ao prédio onde morava Mário Pedrosa, entre a Farme de Amoedo e a antiga
Montenegro, hoje Vinicius de Moraes. Estava ali há uma semana e nem decorara
ainda o número do prédio. Tanto que, quando seu Joaquim, ao preencher a nota da
encomenda, perguntou-me onde seria entregue a estante, tive um momento de
hesitação. Mas foi só um momento. Pensei rápido: “Se o prédio do Mário é 228, o
meu, que fica quase em frente, deve ser 227. “Mas lembrei-me de que, ao ir ali
pela primeira vez, observara que, apesar de ficar em frente ao do Mário, havia
uma diferença na numeração.
— Visconde de Pirajá 127 — respondi, e seu Joaquim desenhou
o endereço na nota.
— Tudo bem, seu Ferreira. Dentro de um mês estará lá sua
estante.
— Um mês, seu Joaquim! Tudo isso? Veja se reduz esse prazo.
— A estante é grande, dá muito trabalho… Digamos, três
semanas.
Contei as semanas. Não via chegar o momento de ter no
escritório a estante sonhada, onde enfim poderia arrumar os livros por assunto
e autores. E,mais que isso, sentir-me um escritor de verdade, um profissional,
cercado de livros por todos os lados. No dia da entrega, voltei do trabalho
apressado para ver minha estante.
— Como é, veio? — perguntei ao entrar.
— Veio o quê?
— Como o quê? A estante!
Não viera. Seu Joaquim não cumprira com a palavra empenhada,
ah português filho de… Telefonei para ele sem dissimular, no tom da voz, minha
irritação. E ele:
— Como não cumpri? Andei com dois homens de cima para baixo
da rua e não encontrei o tal número que o senhor me indicou. Não existe na rua
Visconde de Pirajá o número 127, senhor Ferreira.
Fiquei sem ação. Dera a ele o número errado.
— Diga-me o número certo e sua estante estará em sua casa
amanhã mesmo.
Fiquei sem palavra. Se não era 127, qual número seria? Não
era 227, disso
tinha certeza… E o Joaquim ao telefone:
— Qual o número, seu Ferreira?
— É 217, seu Joaquim… É isso, 217.
— Muito bem, 217. Já anotei. Amanhã terá sua estante.
Não tive. Ao chegar em casa e verificar que a estante não
estava lá, conclui que havia dado de novo o número errado ao marceneiro. E
corri para o telefone a fim de me desculpar.
— Seu Joaquim, é o senhor Ferreira… da estante.
— O senhor está querendo brincar comigo?
Fui tomado por um frouxo de riso, enquanto seu Joaquim,
indignado, dizia que não ia mais entregar estante nenhuma, que eu fosse
buscá-la, pois já era a segunda vez que subira e descera a Visconde de Pirajá,
carregando aquela estante enorme, etc. etc…
Ferreira Gullar
Sem comentários:
Enviar um comentário