«O Rio»
Rio Paraíba/ Umbuzeiro
265- «O RIO»
O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no
"o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os
marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em
leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia
medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93,
aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa
serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços.
Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das
Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e
ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma
pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O
leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas
vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias
devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho
armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a
água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão.
O rio para mim seria um ponto de contacto com o mundo. Quando estava ele de
barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes
manobrava.
Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos
cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as
cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia
então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros
contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao
sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os
grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o
meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele
fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não
havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza
forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou
manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da
água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me
arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela
beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara
conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas
lapadas de cinturão e gritou para mim:
- Vou dizer ao velho!
Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo
da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim
mestre de vida.
José Lins do Rego
Sem comentários:
Enviar um comentário