«O Velho Sábio e o Jovem Príncipe»
Conto de José Régio
270- «VELHO SÁBIO E O JOVEM PRÍNCIPE»
Era uma vez um homem verdadeiramente sábio. Como tal,
ignorava muita coisa que só serve para obstinação no erro e confusão das
verdades; mas sabia muito do que mais importa, – sobre este mundo e os outros.
Não é certo que a verdadeira sabedoria consiste tanto em saber como em ignorar?
Longo tempo vivera entre os mais homens, levando, até, uma
vida muito variada. Nem de outro modo poderia ter aprendido tanto! Mas sentindo
aproximar-se a velhice, quis, por assim dizer, recapitular tudo que aprendera,
aprofundar ainda certos conhecimentos, e preparar-se em paz para o momento mais
grave da vida do homem, – que é precisamente o de deixar a vida. Despediu-se,
então, dos seus dois ou três amigos fiéis como quem não julgava poder tornar a
vê-los. E retirou-se para um ermo, onde esperava poder viver feliz na tranquila
expectativa da morte próxima.
De facto, nesse ermo vivia feliz o nosso velho sábio. Consigo
levara alguns instrumentos e utensílios necessários; alguns papéis já escritos
do seu punho, ou para escrever; e meia dúzia de livros (não mais de meia dúzia)
que tinham sido durante a sua agitada existência os seus melhores protectores,
consoladores e conselheiros. Tinha uma gruta por casa; o fogo para se aquecer;
as peles dos animais para se cobrir; a sombra das árvores para se defender do
calor; os frutos da terra para se alimentar. Aí, era feliz o nosso velho sábio!
Vigoroso, apesar de velho, muitas vezes, a princípio,
se entregava à caça e à pesca. Naturalmente, porém, se viera acostumando a só
se nutrir de ervas e frutos, repugnando-lhe ter de matar seres vivos quer por
seu mero divertimento, (o que lhe parecia um crime contra o Criador,
contra a Criação), quer, até, para seu sustento. Porém, de nenhum preceito ou
doutrina resultara propriamente esta sua atitude de espírito, mas sim duma
íntima evolução natural.
Sendo aquele ermo um verdadeiro paraíso povoado de árvores,
flores, aves e outros pequeninos ou grandes animais de toda a casta, – cada
vez mais amava tudo que via: tanto pela sua beleza real e própria, como por se
lhe afigurar tudo expressão duma Presença Imensa que a tudo ultrapassava. Sem
conflito entre si se lhe abriam os olhos do corpo e os da alma! – o que, sem
dúvida, é sinal de grande aperfeiçoamento. Cada pequenina flor da terra lhe
parecia um milagre: milagre a sua cor, ou combinação de tons; milagre o seu
cheiro; milagre o modo como recebia a lagrimazinha do orvalho da madrugada;
milagre o gentil bailado que ensaiava ao gosto da aragem… Também os costumes do
mais pequenino insecto se lhe tornavam cheios de interesse. Horas e horas
esquecidas os seguia, os estudava, de bruços na terra. Isto sem nenhuma
preocupação de estudo, – o que fazia com que mais aprendesse.
Da pequenina flor ou do pequenino insecto, partia para a
contemplação do abismo estrelado dos céus; ou para a meditação da alma do
animal humano, com quem tanto lidara quando errara no mundo. Mas como aceitava
o mistério, o mistério não o torturava. Sabia que não podia saber tudo. Os seus
pensamentos eram simples, elevados e calmos. Nos intervalos, ia escrevendo
vagarosamente as suas memórias. Reconhecia que, na verdade, não só
recapitulava como aprofundava todos os seus mais verdadeiros conhecimentos.
Tendo pouco papel, e não muito cómodos instrumentos de escrita, via-se obrigado
a poupar as palavras. Tanto melhor!, – não é verdade? Só escrevia o essencial.
Pois não é verdade que todos temos papel, tinta e canetas a mais?
Aí, era feliz no seu ermo o nosso velho sábio! Até o seu
corpo já velho recuperava forças. Muitas vezes se banhava nos ribeiros, como um
rapaz; e depois se deixava ficar secando ao sol, com a cabeça à sombra duma
árvore, sobre um colchão de ervas e flores. E outras vezes tinha vontade de cantar,
e cantava, por que não?, logo ao romper de alva, em desafio com a passarada.
Tornava-se isto uma sua maneira de rezar – por mero Amor – àquela Presença
Imensa que os homens nomeiam de tão diversas maneiras – e por cuja diversidade
de nomes se odeiam, se torturam, se matam, sendo tão diversos nomes só
um!
Sim, há anos que era feliz no seu ermo o nosso velho sábio.
E como já lhe ia ficando longe o mundo dos homens! o mundo dos homens cegos,
desgraçados, maus! – aquele em que também ele tivera decepções, lutara
debalde, engolira humilhações até por si próprio infligidas! Como já lhe ia
ficando longe, agora que, na paz atingida, nem a lembrança da morte
próxima o podia assustar um segundo…!
Ora uma tarde, estando o velho sábio cozendo os seus
legumes à porta da sua gruta, sentiu uma grande restolhada nos arbustos
vizinhos. Era um homem que veio cair a seus pés. Vinha ferido e arquejante,
com roupas opulentas mas esfrangalhadas. Mal pôde erguer para ele os olhos
desvairados. As suas mãos sangrentas agarraram-se ao busto do velho. A sua
boca, torcendo-se, procurava dizer palavras que imploravam, que imploravam mas
se não distinguiam…; – e o homem desfaleceu. Então, o velho arrastou-o para
dentro da sua gruta. Arranjou-lhe um bom leito de folhas secas e peles.
Descalçou-o, desoprimindo-o das roupas que o pudessem incomodar. E depois
lavou-o do sangue, pondo-lhe sobre as feridas, que afinal eram ligeiras, os
bálsamos que sabia preparar com ervas benéficas. O desconhecido voltara a
si do seu desmaio. Mas sobre aquele excelente leito natural, ao
calor da fogueira que o seu protector acendera, caiu num sono profundo. Antes
de adormecer, porém, dirigira ao velho um sorriso juvenil, – não obstante o
seu corpo de homem, era quase uma criança – e estendera-lhe a mão
em sinal de agradecimento. O velho tomou-a nas suas, com toda a cautela porque
estava ferida. E ali se ficou velando-o, comovido até às entranhas por aquela
presença, que há tanto não gozava, dum seu semelhante. Muitas vezes, quando
errara no mundo e tivera os amores efémeros que todos têm, desejara um filho
para ter alguém que verdadeiramente amasse. E já lhe parecia agora estar
velando um filho, – que lhe caíra do céu. Não obstante sempre haver sido
feliz no seu ermo, essa noite estava sendo a melhor da sua vida.
Durante três dias ali viveram juntos, o nosso velho sábio e
o seu desconhecido companheiro. Como nada sabiam da vida particular um do
outro, só falavam das coisas que realmente mais importam. E falaram muito!, –
mesmo quando ficavam calados. O moço era cheio de curiosidades e dúvidas.
Quanto ao velho, há tanto que não comunicava com ninguém, a não ser consigo
mesmo ou a natureza ignorante da língua dos homens!
Ao fim dos três dias, disse o jovem:
- Nada sabes a meu respeito; mas sou muito poderoso! Este
mesmo retiro em que vives me pertence, ou há-de pertencer-me. Sou o príncipe
herdeiro. Meu pai está velho e quer abdicar em mim. Sinto-me rodeado de
ambições, rivalidades, ódios, revoltas… ou hipocrisias. E o que é pior é que
me sinto eu mesmo perplexo perante vários problemas. Queria vir a ser um rei
justo, protector dos mais infelizes…, mas como? De qualquer modo acabarão os
inimigos da justiça por me vencer, – não tendo eu quem me esclareça e anime!
Quando aqui vim parar, escapava duma cilada. Vês que já planeiam a minha
morte, por saberem que desejo ser justo? Mas as ciladas vão multiplicar-se sob
os meus pés… E eu preciso de quem saiba disciplinar a minha força confusa, e
aproveitar a minha mocidade! Meu pai, como te disse, está velho: não velho
forte como tu, mas gasto. Neste momento, quem sabe se não agonizará o pobre
velho na angústia e na ignorância do que me terá sucedido? Tão feliz tenho sido
contigo, nestes escassos dias, que me tornei o mais ingrato dos filhos, o mais
indigno do príncipes… Mas nunca gozara desta paz, nunca ouvira palavras como
as tuas! nunca respeitara ninguém, nem a meu próprio pai, como já te respeito!…
Anda comigo, e serei forte. Serás o meu primeiro ministro. Serás o verdadeiro
rei. Dar-te-ei, no meu reino, todos os poderes e todas as riquezas…
O velho fitou-o de alto, com uma dureza de indignação nos
olhos :
- Todos os poderes e todas as riquezas! Pensas conhecer-me,
julgas respeitar-me, e tentas comprar-me com esse prato de lentilhas?
- Perdoa – disse humildemente o moço. – Dar-te-ei o amor dum
filho e a obediência dum discípulo atento…
- Já é mais alguma coisa, concordo. Mas ainda não
chega.
O príncipe calou-se, triste. Mas perguntava a si próprio,
revolvendo muitas coisas no espírito, como poderia decidir o seu velho amigo.
Por fim, levantou para ele os olhos brilhantes:
- Dizes que já não tens medo de nada! Nem da vida, nem da
morte. Dizes que já aprendeste tudo quanto és capaz de saber. Mas de que te
serve a tua força, de que te serve a tua sabedoria, se não servem a mais
ninguém? se hão-de apagar-se neste deserto?
- Já te serviram a ti de alguma coisa, não é verdade?
- Lembra-te de que ainda sou muito novo!… – gemeu o príncipe
– Não saberei defender os tesouros que me fizeste adivinhar… E lembra-te que
fui eu que vim ter contigo. Vem tu agora comigo! Dou-te uma ocasião única para
aproveitares a tua força e a tua sabedoria… Ainda te não chega, isto?
O velho cravou então nele os seus olhos profundos e
serenos. Sorriu-se, com um sorriso que também era juvenil, e respondeu :
- Por hoje, não tornemos a falar no assunto, vejo que já
alguma coisa aprendeste contigo próprio… além do que aprendeste comigo.
Mas quando o jovem príncipe adormeceu no seu leito de folhas
secas e peles, esteve um largo pedaço a contemplá-lo. Depois curvou-se e
beijou-o na testa, adoptando-o por filho: Sabia que também aquele viveria num
ermo, – e terrível, o mais terrível dos ermos!, o que se vive entre os homens.
Seria, pois, a sua companhia, enquanto pudesse. Regressaria ao mundo para
acabar os seus dias na luta com os homens cegos, desgraçados, maus…
Bela noite! Estava uma bela noite de lua. Toda a noite o
velho sábio vagueou pelos seus domínios, despedindo-se daqueles sítios amados.
Não despontara ainda o sol na aguada rosa do horizonte, quando, vindo ao seu
encontro, o jovem príncipe lhe perguntou mais com os olhos do que com os
lábios :
- Então?!
E o velho sábio respondeu-lhe:
- Pois sim! vamos.
José Régio
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