«Um General na Biblioteca»
Biblioteca Borges em Paris/ Néstor Sarmiento
272- «UM GENERAL NA BIBLIOTECA»
Em Pandúria, nação ilustre, uma suspeita se insinuou um dia
nas mentes dos oficiais superiores: que os livros conteriam opiniões contrárias
ao prestígio militar. De facto, a partir de processos e inquéritos,
concluíra-se que o hábito, já assaz difundido, de considerar os generais como
gente que pode errar e provocar desastres, e a guerra como algo por vezes
diverso de radiosas cavalgadas rumo a destinos gloriosos, era compartilhado por
uma grande quantidade de livros, modernos e antigos, pandúrios ou estrangeiros.
O Estado-Maior de Pandúria reuniu-se para fazer o ponto da
situação. Mas não sabiam por onde começar, dado que, em matéria bibliográfica,
nenhum dos seus membros era particularmente versado. Foi, então, nomeada uma
comissão de inquérito, sob o comando do general Fedina, oficial severo e
escrupuloso. A comissão deveria examinar todos os livros da maior biblioteca de
Pandúria.
Essa biblioteca estava instalada num edifício antigo, cheio
de escadas e colunas, de paredes descascadas e, aqui e ali, à beira da ruina.
As suas frias salas estavam apinhadas de livros, abarrotadas, em parte
impraticáveis; só os ratos poderiam explorar-lhe todos os recantos. O orçamento
do Estado pandúrio, sobrecarregado por enormes despesas militares, não podia
conceder qualquer ajuda.
Os militares tomaram posse da biblioteca numa chuvosa manhã de Novembro. O
general apeou-se do cavalo, atarracado, hirto, com o grosso cachaço rapado, as
sobrancelhas enrugadas sobre o pince-nez; de um carro desceram quatro tenentes
escanzelados, de queixo levantado e pálpebras caídas, cada qual com uma pasta
na mão. Depois, chegou um esquadrão de soldados, que acamparam no antigo pátio,
com mulas, fardos de feno, tendas, cozinhas, rádio de campanha e bandeiras
relampejantes de cor.
Foram colocadas sentinelas à porta e um cartaz proibindo a entrada «por motivo
das grandes manobras, até ao final da duração das mesmas». Era um expediente,
para que o inquérito pudesse ser efectuado no maior segredo. Os estudiosos que
costumavam dirigir-se à biblioteca todas as manhãs, envoltos em capotes,
cachecóis e passa-montanhas, para não gelarem, tiveram de voltar para trás.
Perplexos, questionavam-se: — Mas como? Grandes manobras na biblioteca? Mas não
deixarão tudo em desordem? E a cavalaria? E também vão andar aos tiros?
Do pessoal da biblioteca, ficou apenas um velhote, o senhor Crispino, recrutado
para explicar aos oficiais a disposição dos volumes. Era um sujeito baixinho,
de crânio calvo como um ovo e olhos como cabeças de alfinete por detrás dos
óculos de hastes.
O general Fedina preocupou-se, antes de mais, com a
organização logística, já que tinha ordens para que a comissão não saísse da
biblioteca antes de levar a bom termo o inquérito; era um trabalho que requeria
concentração e não deviam distrair-se. Assim, asseguraram o abastecimento de
víveres, alguns aquecedores da caserna, uma provisão de lenha, a que se
juntaram algumas colecções de velhas revistas, consideradas pouco
interessantes. Nunca a biblioteca tinha estado tão aquecida, naquela estação.
Em locais seguros, rodeados de armadilhas para os ratos, foram colocadas as
camas de campanha onde o general e os seus oficiais iriam dormir.
Procedeu-se depois à divisão de tarefas. A cada tenente
foram confiados determinados ramos do saber, determinados séculos de História.
O general controlaria a classificação dos volumes e aplicaria diferentes
carimbos, conforme o livro fosse declarado apropriado para ser lido pelos
oficiais, os sub-oficiais, a soldadesca, ou denunciado ao Tribunal Militar.
E a comissão iniciou a sua tarefa. Todas as tardes, o rádio
de campanha transmitia o relatório do general Fedina ao comando supremo.
«Examinados os volumes com os números tantos. Mantidos como suspeitos, tantos.
Declarados legíveis por oficiais e soldados, tantos». De vez em quando, aquelas
frias cifras eram acompanhadas de alguma comunicação extraordinária: a
requisição de um par de óculos para a presbitia de um tenente, que tinha
partido os seus, a notícia de que um mulo tinha devorado um raro códice de
Cícero deixado sem vigilância.
Mas acontecimentos de bem maior alcance iam amadurecendo,
deles não dando notícia o rádio de campanha. A floresta de livros, ao contrário
de se rarefazer, parecia tornar-se cada vez mais emaranhada e insidiosa. Os
oficiais ter-se-iam perdido, se não fosse a ajuda do senhor Crispino. Por
exemplo, o tenente Abrogati punha-se bruscamente de pé e atirava para cima da
mesa o volume que estava a ler: — Mas, é inaudito! Um livro sobre as guerras
púnicas que diz bem dos cartagineses e critica os romanos! É preciso
denunciá-lo de imediato! — (Diga-se que os pandúrios, com razão ou sem ela, se
consideravam descendentes dos romanos). Com o seu passo silencioso, nas
pantufas felpudas, aproximava-se o velho bibliotecário. — E isso não é nada —
dizia — leia aqui, ainda sobre os romanos, o que está escrito, já poderá pôr
também isto no auto, e isto, e isto — e apresentava-lhe uma pilha de volumes. O
tenente começava a folhear os volumes, nervoso; depois, já interessado, lia,
tomava apontamentos. E coçava a cabeça, resmungando: Ó diabo! Mas quanto se
aprende neles! Quem havia de dizer! — O senhor Crispino deslocava-se na
direcção do tenente Lucchetti, que fechava um tomo com fúria, dizendo: — Olha
que coisa! Aqui, têm a coragem de manifestar dúvidas sobre a pureza dos ideais
das Cruzadas! Sim, meu general, das Cruzadas! — E o senhor Crispino,
sorridente: — Ah! Olhe que tem de se fazer um auto sobre este assunto; posso
sugerir-lhe alguns outros livros, onde poderá encontrar mais pormenores — e
atirava-lha para cima meia prateleira. O tenente Lucchetti submergia-se nela,
de cabeça baixa e, durante uma semana ouviam-no virar as páginas, enquanto
murmurava: — Ora estas Cruzadas, que bela confusão!
No comunicado vespertino da comissão, o número de livros
examinados era cada vez maior, mas já não se reportava nenhum dado sobre
veredictos positivos ou negativos. Os carimbos do general Fedina permaneciam
ociosos. Se, intentando verificar o trabalho dos tenentes, perguntava a um
deles: — Mas como é que deixou passar este romance? A tropa, aqui, faz melhor
figura que os oficiais! É um autor que não respeita a ordem hierárquica! — o
tenente respondia-lhe citando outros autores e embrenhando-se em raciocínios
históricos, filosóficos e económicos. Daí nasciam discussões generalizadas, que
continuavam por horas e horas. O senhor Crispino, silencioso nas suas pantufas,
quase invisível na sua bata cinzenta, acudia sempre no momento exacto, com um
livro que, no seu entender, continha pormenores interessantes sobre o tema em
questão e que tinha sempre o efeito de pôr em crise as convicções do general
Fedina.
Entretanto, os soldados, com pouco que fazer, aborreciam-se.
Um deles, Barabasso, o mais instruído, pediu aos oficiais um livro para ler. A
princípio, queriam dar-lhe um dos poucos que já tinham sido declarados como
legíveis pela tropa; mas, pensando nos milhares de volumes que ainda faltava
examinar, o general lastimou que as horas de leitura do soldado Barabasso não
fossem aproveitadas para completar o trabalho; e deu-lhe um livro ainda por
analisar, um romance que parecia fácil, aconselhado pelo senhor Crispino. Lido
o livro, Barabasso devia reportá-lo ao general. Também outros soldados pediram
para fazer o mesmo, o que lhes foi autorizado. O soldado Tommasone lia em voz
alta a um seu camarada analfabeto e este dava a sua opinião. Nas discussões
gerais começaram a participar também os soldados.
Sobre o andamento dos trabalhos da comissão não se conhecem
muitos pormenores: o que aconteceu na biblioteca, naquelas longas semanas invernais,
não foi relatado. Facto é que as comunicações radiofónicas do general Fedina
foram chegando ao Estado-Maior de Pandúria com progressiva rareza, até que
cessaram de todo. O comando supremo começou a alarmar-se; enviou ordens para
que se concluísse o inquérito o mais depressa possível e se apresentasse um
exaustivo relatório.
A ordem chegou à biblioteca quando o ânimo de Fedina e dos seus homens se tornava palco do confronto entre sentimentos opostos: por um lado, iam descobrindo, a cada momento, novas curiosidades para satisfazer, estavam a ganhar um gosto por aquelas leituras e aqueles estudos de que nunca antes teriam suspeitado; por outro, não viam a hora de regressar ao convívio das pessoas, de retomar contacto com a vida que lhes surgia agora muito mais complexa, quase renovada a seus olhos; e por outro lado, ainda, a aproximação do dia em que deviam deixar a biblioteca enchia-os de apreensão, porque era necessário dar conta da sua missão e, com todas as ideias que lhes iam brotando nas cabeças, já não sabiam como sair daquele embaraço.
À tardinha, olhavam através das janelas os primeiros rebentos nos ramos
iluminados pelo crepúsculo e as luzes da cidade que se acendiam, enquanto um
deles, em voz alta, lia os versos de um poeta. Fedina não estava junto deles:
tinha dado ordens para que o deixassem só, na sua mesa, porque tinha de redigir
o relatório final. Mas, de vez em quando, ouvia-se soar a campainha e a sua voz
chamar: — Crispino! Crispino! — Não podia avançar sem a ajuda do velho
bibliotecário, e acabaram por sentar-se à mesma mesa e redigir o relatório em
conjunto.
Uma bela manhã, finalmente, a comissão abandonou a
biblioteca e foi apresentar o relatório ao comando supremo; e Fedina descreveu
os resultados do inquérito diante do Estado-Maior reunido. O seu discurso era
uma espécie de compêndio da história da Humanidade, das origens aos nossos
dias, em que todas as ideias mais inquestionáveis para os bem-pensantes de
Pandúria eram criticadas, as classes dirigentes denunciadas como responsáveis pelas
desventuras da pátria, o povo exaltado como vítima heróica de guerras e
políticas erradas. Era uma exposição um pouco confusa, com afirmações muitas
vezes simplistas e contraditórias, como acontece a quem há pouco abraçou novas
ideias. Mas, sobre o significado global, não podia haver dúvidas. A assembleia
dos generais de Pandúria ficou atónita, arregalou os olhos, recuperou a voz,
gritou. O general nem sequer pôde acabar. Falou-se de degradação, de processo.
Depois, pelo temor de escândalos mais graves, o general e os quatro tenentes
foram mandados para a reforma por motivos de saúde, por causa de «um grave
esgotamento nervoso contraído em serviço». Vestidos à civil, foram vistos a
entrar com frequência, encapotados e enroupados para não gelarem, na velha
biblioteca, onde os esperava o senhor Crispino com os seus livros.
Italo Calvino
Italo Calvino
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