«Morte em Veneza»
Thomas Mann/ Nobel da Literatura em 1929
274- «MORTE EM VENEZA»
[Excerto]
Numa tarde de primavera do ano de 19. . ., que meses a fio
vinha mostrando ao nosso continente um semblante tão ameaçador, Gustav
Aschenbach, ou von Aschenbach, como passara a chamar-se oficialmente desde seu
quinquagésimo aniversário, saíra de sua residência na rua do Príncipe Regente,
em Munique, para um longo passeio solitário.
Super excitado por uma manhã de trabalho árduo e arriscado,
a exigir justamente agora uma extrema cautela, circunspecção, rigor e força de
vontade, o escritor não conseguira, nem mesmo após o almoço, sofrear a vibração
do mecanismo criador em seu íntimo aquele "motus animi continuus"
que, segundo Cícero, constitui a essência da eloquência e não pudera dispor do
cochilo reparador que lhe era tão necessário durante o dia, frente ao crescente
desgaste de suas forças.
Assim, logo depois do
chá, ele procurara o céu aberto, na esperança de que um pouco de ar livre e
movimento o restabelecessem, propiciando-lhe uma noite proveitosa.
Era início de maio e, após semanas húmidas e frias,
irrompera bruscamente um falso auge de verão. O Jardim' Inglês, apesar de mal
ter começado a cobrir-se de folhas tenras, estivera abafado como em agosto e
cheio de veículos e transeuntes nos arredores da cidade.
Buscando caminhos mais ermos e tranquilos, Aschenbach
chegara até Aumeister, onde se detivera por alguns momentos a observar o
terraço do restaurante, animado como de praxe, ao redor do qual estavam estacionados
alguns coches e carruagens; de lá, com o sol poente, tomara o caminho de volta
pelo campo aberto, fora dos limites do parque; como, porém, estivesse cansado,
e dos lados de Fõhring ameaçasse vir um temporal, deteve-se junto ao Cemitério
Norte, aguardando o bonde que deveria levá-lo de volta à cidade, em linha reta.
Casualmente encontrou desertos o ponto de parada e seus
arredores. Não se via um só veículo, nem na pavimentada rua Ungerer, cujos
trilhos se estendiam, brilhando solitários, na direção de Schwabing, nem na
estrada de Fõhring. Por trás das sebes das marmorarias, onde cruzes, lápides e
mausoléus à venda configuravam um segundo cemitério, desabitado, nada se mexia,
e a capela mortuária, de construção bizantina, ali defronte, repousava silenciosa,
banhada pelo reflexo do dia que findava.
Sua fachada, guarnecida de cruzes gregas e emblemas
hieráticos em cores claras, apresentava ainda inscrições em letras douradas,
dispostas simetricamente citações escolhidas das escrituras, relativas à vida
no Além, como: "Eles adentrarão a morada de Deus", ou "Que a luz
eterna os ilumine" -, e, enquanto esperava, Aschenbach encontrou por
alguns minutos um sério entretenimento em decifrar tais fórmulas, deixando o
espirito vagar contemplativo por sua mística transparente até que, ao retornar
de seus devaneios, notou no pórtico, acima dos dois animais apocalípticos que
vigiavam a escadaria, um homem cuja aparência não muito habitual imprimiu a
seus pensamentos um rumo inteiramente diverso.
Se surgira do interior da capela, passando pela porta de
bronze, ou se, vindo de fora, subira até lá, sem ser notado, não se poderia
precisar. Sem se aprofundar muito na questão, Aschenbach pendeu mais para a
primeira hipótese. De estatura mediana, magro, sem barba e com um nariz
incrivelmente rombudo, o homem era do tipo ruivo, com a característica pele
leitosa e sardenta. Ao que tudo indicava, não era bávaro, a começar pelo chapéu
de palha de abas largas e retas que lhe cobria a cabeça, emprestando à sua
aparência um ar de estrangeiro, de alguém vindo de terra distante. Usava,
entretanto, uma mochila afivelada aos ombros, de acordo com o costume local, um
terno acinturado de cor amarela e, ao que parecia, de tecido cru; no braço
esquerdo, que mantinha junto ao corpo, trazia uma capa de chuva cinza, e na mão
direita, um bastão com ponta de ferro, firmado obliquamente contra o solo e em
cujo castão apoiava o quadril, tendo os pés cruzados. De cabeça erguida, de
modo que o pomo-de-adão se destacava forte e nu no pescoço magro, a despontar
da camisa esporte frouxa, ele perscrutava atentamente o horizonte com os olhos
descoloridos, franjados de cílios vermelhos e separados por duas rugas
verticais enérgicas, numa combinação curiosa com o nariz levemente arrebitado.
Assim, e talvez contribuísse para essa impressão o lugar elevado e elevante em
que se encontrava, sua postura tinha um quê de dominadora altivez, arrogância,
ou mesmo ferocidade, pois, talvez ofuscado, franzisse o rosto para o sol
poente, ou, talvez por uma deformidade fisionómica perene, seus lábios pareciam
curtos demais, arreganhados, expondo até às gengivas os dentes longos e
brancos.
É bem possível que Aschenbach, em sua inspeção meio distraída
e meio inquisitiva do estranho, tivesse incorrido numa f alta de consideração,
pois de súbito percebeu que este revidava seu olhar, e de modo tão belicoso,
tão direto, tão visivelmente disposto a levar o caso ao extremo, forçando o
outro a desviar os olhos, que Aschenbach, incomodado, voltou-se e pôs-se a
caminhar ao longo das sebes, decidido a não se ocupar mais do homem. Minutos
depois já o havia esquecido. Entretanto, ou porque o aspecto de viajante do
estranho atuasse sobre sua imaginação, ou por estar em jogo algum tipo de
influência física ou psíquica, notou, atónito, uma estranha expansão de seu
íntimo, uma espécie de inquietação errante, um anseio juvenil sedento de
distância, um sentimento tão vivo, tão novo, ou, antes, há tanto tempo inabitual
e desaprendido, que ele parou enleado, mãos nas costas e olhos no chão, a
investigar a natureza e o propósito dessa sensação.
Era vontade de viajar, nada mais; mas na verdade irrompera
como um acesso e se intensificara, atingindo o nível do passional, sim, até
beirar a alucinação. Sua ânsia se fez vidente, sua imaginação, que desde as
horas de trabalho ainda não encontrara repouso, criou um exemplo de todas as
maravilhas e horrores da terra variegada que repentinamente se via solicitada a
configurar: ele via, via uma paisagem sob um céu carregado de vapores, uma
região pantanosa, úmida, exuberante e monstruosa, uma espécie de selva
antediluviana, feita de ilhas, brejos e braços de rio lamacentos via por toda
parte cabeleiras de palmeiras a emergir de uma profusão de fetos luxuriosos, de
um fundo vegetal de plantas carnudas, inchadas, explodindo em florações
exóticas; via árvores incrivelmente distorcidas lançar no ar raízes que vinham
mergulhar no solo, em águas estagnadas, a espelhar um verde sombrio, onde,
entre flores flutuantes de um branco leitoso e do tamanho de terrinas, pássaros
bizarros de ombros altos e bico disforme ficavam de pé nos baixios, olhando de
lado, imóveis; via faiscar, entre as hastes nodosas de um bambual, as pupilas
de um tigre agachado e sentia o coração pulsar num misto de terror e enigmática
atração. A seguir, a visão desvaneceu-se e, meneando a cabeça, Aschenbach
retomou sua caminhada ao longo das sebes das marmorarias.
Para ele, viajar pelo menos desde que pudera dispor de meios
para usufruir a seu bel-prazer as vantagens do tráfego internacional não
significava nada além de uma medida higiénica, que era preciso adotar de tempos
em tempos a contragosto. Excessivamente ocupado com as tarefas que seu eu e a
alma europeia lhe propunham, excessivamente sobrecarregado pelo dever de
produção, excessivamente avesso à distração para prestar-se ao papel de amante
do colorido mundo exterior, dera-se inteiramente por sacente, de que ninguém
devia suspeitar e que nenhum indício de fraqueza ou negligência no produto
acabado deveria trair. Mas parecia razoável não distender o arco em demasia e
não sufocar teimosamente uma necessidade que se manifestara com tanta
veemência. Pensou em seu trabalho, na passagem em que se vira forçado a
abandoná-lo, hoje outra vez, como já na véspera, e que parecia não querer ceder
nem a cuidados pacientes, nem a uma rápida investida. Examinou-a novamente,
tentou quebrar ou dissolver o obstáculo, e desistiu do ataque com um arrepio de
repugnância. Não se apresentava ali nenhuma dificuldade extraordinária; o que o
paralisava eram, isso sim, os escrúpulos do desprazer, representados por uma
exigência insaciável. Exigência que, na verdade, desde bem jovem lhe valera
como o ser e a essência do talento, e em nome da qual havia reprimido e
esfriado o sentimento, pois sabia que este é propenso a satisfazer-se com um
descuidado mais-ou menos, com uma meia perfeição.
Será que o sentimento escravizado vingava-se agora,
abandonando-o, recusando-se a dali por diante sustentar e dar asas à sua arte,
levando consigo todo prazer, todo o encanto pela forma e pela expressão?
Thomas Mann
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