«A Carteira»
Conto de Machado de Assis
283- «A CARTEIRA»
...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira.
Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu,
salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse
rindo:
— Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
— É verdade, concordou Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber
que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a
carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da
posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas,
segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família
excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher,
que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques,
tanta coisa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro.
Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos,
duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os
bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma
voragem.
— Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o
Gustavo C..., advogado e familiar da casa.
— Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e
constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que
fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe
tirou alguma coisa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos
jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher,
bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se
nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à
casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e
depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao
piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou
simplesmente falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha,
criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e
perguntou-lhe o que era.
— Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da
miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias
melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e
quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E
toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar
mal, e a más horas.
A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e
tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto,
como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe
hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo.
Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem
ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembleia é que viu a carteira no
chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando. Durante os primeiros minutos,
Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca.
No Largo parou alguns instantes — enfiou depois pela Rua da Carioca, mas
voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco
no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café.
Pediu alguma coisa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de
abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao
mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência
perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava
com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irónica e de censura.
Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A
consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à
polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os
apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira.
Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém
iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso,
finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trémulo. Tinha
dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis,
algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando
menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes.
Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois
de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com
medo de a perder,
tornou a guardá-la.
Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de
contar o dinheiro. Contar para que? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram
setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém
soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve
pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao
dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar
do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira
algum sinal.
“Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso
utilizar-me do dinheiro,” pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não
abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o
nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e
pareceu-lhe efectivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões,
mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.
A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro,
sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque
era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de
cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só
então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade
ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
“Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso
fazer.”
Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco
preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou
ao amigo se lhe faltava alguma coisa.
— Nada.
— Nada?
— Por quê?
— Mete a mão no bolso; não te falta nada?
— Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão
no bolso. Sabes se alguém a achou?
— Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado
para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de
tanta luta com a necessidade, era um triste prémio. Sorriu amargamente; e, como
o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.
— Mas conheceste-a?
— Não; achei os teus bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para
o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos
bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e
estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trémula, rasgou-o em trinta mil pedaços:
era um bilhetinho de amor.
Machado de Assis
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