«Os Canhotos»
Conto de Gunter Grass
284- «OS CANHOTOS»
Erich me observa. Também eu não tiro meus olhos dele. Nós
dois temos armas nas mãos e está decidido que faremos uso dessas armas, que nos
feriremos um ao outro com elas. Nossas armas estão carregadas. Seguramos diante
de nós pistolas testadas em longos exercícios, e, logo depois dos exercícios,
azeitadas com cuidado, esquentando devagar o metal frio. À distância um ferro
desses parece inofensivo. Por acaso não se pode segurar assim um porta-canetas,
uma chave pesada e arrancar um grito e tanto de uma tia assustada, estendendo a
mão calçada em uma luva preta? Jamais poderei permitir que amadureça em mim o
pensamento de que a arma de Erich seja cega, inofensiva ou de brinquedo. Também
sei muito bem que Erich não põe a seriedade do meu instrumento em dúvida por um
segundo que seja. Além disso nós dois, há cerca de meia hora, desmontamos e
limpamos as pistolas, para depois voltar a montá-las, carregá-las e
engatilhá-las. Nós não somos sonhadores. Elegemos a chácara de Erich para o
lugar de nossa acção inevitável. Uma vez que a casinha de apenas um andar fica a
mais de uma hora da próxima estação de trem, ou seja, bem isolada, devemos
pressupor que todo e qualquer ouvido indesejado, no verdadeiro sentido da
palavra, haverá de estar bem longe do tiro. Nós esvaziamos a sala e tiramos os
quadros, na maior parte cenas de caça e naturezas-mortas, da parede. É que os
tiros não devem atingir as cadeiras, as cómodas brilhantemente calorosas e os
quadros ricamente emoldurados. Também não queremos acertar o espelho ou ferir
uma porcelana. Apenas nós queremos ser o alvo.
Nós dois somos canhotos. Conhecemo-nos do clube. Os senhores
sabem muito bem que os canhotos dessa cidade, assim como todos os que são
vítimas de um defeito de qualquer natureza, fundaram um clube. Nós nos
encontramos com regularidade e procuramos educar nosso manejo diferente e
lamentavelmente tão desajeitado. Durante algum tempo um destro prestativo nos
deu aula. Lamentavelmente ele agora não aparece mais. Os senhores da direcção
criticaram seus métodos de ensino e acharam que os membros do clube teriam de
reaprender sozinhos. E assim nós passamos a inventar, juntos e à vontade, jogos
destinados apenas a nós dois com provas de destreza como: sacar, enfiar,
desengatilhar, abrir e abotoar com a direita. Em nossos estatutos está escrito:
não descansaremos enquanto a esquerda não for igual à direita.
Por mais bela e vigorosa que seja essa frase, ela não deixa
de ser um absurdo dos mais completos. Assim nós jamais chegaremos lá. E a ala
mais extrema de nossa aliança, já exige há tempo que essa sentença seja riscada
e em vez dela seja escrito: nós queremos ter orgulho de nossa mão canhota e não
nos envergonhar da habilidade com a qual nascemos.
Também esse lema por certo não procede, e apenas o seu apto,
como também uma certa generosidade do sentimento, fez com que escolhêssemos
essas palavras. Erich e eu, que somos relacionados à ala mais extrema de nossa
aliança, sabemos muito bem como são profundas as raízes que nossa vergonha
fincou ao chão. A casa dos pais, a escola, mais tarde os tempos do serviço
militar não contribuíram nada no sentido de nos ensinar uma postura capaz de
suportar essa peculiaridade insignificante – insignificante se comparada a
outras anormalidades bem mais disseminadas. Tudo começou quando estendíamos nossa
mãozinha na infância. Essas tias, tios, amigas pelo lado materno, colegas pelo
lado paterno, essa foto de família terrível, que escurece o horizonte de uma
infância e é impossível de ser ignorada. E a mão tinha de ser estendida a
todos:
– Não, não a mãozinha malcriada, dê a bem-comportada. Você
tem de dar a mãozinha certa, a mãozinha boa, a única mãozinha verdadeira,
esperta e jeitosa, a mãozinha direita!
Eu tinha dezasseis anos e pela primeira vez agarrei uma
menina:
– Oh, você é canhoto! – ela disse, desiludida, e tirou
minha mão de dentro de sua blusa.
Recordações dessas marcam, e se apesar disso ainda quisermos
escrever esse lema – Erich e eu o redigimos – e nosso livro, é porque com isso
estamos apenas buscando mencionar um ideal que com certeza jamais poderá ser
alcançado.
Então percebi que Erich havia comprimido os lábios e
apertado os olhos. Faço o mesmo. Os músculos de nossas faces brincam, a pele da
testa se distende, o dorso de nossos narizes se afina. Erich agora parece um
actor de cinema, cujas feições me são familiares de várias cenas audaciosas.
Devo supro que também sou marcado por uma semelhança fatal com um desses dúbios
heróis da tela? Nós por certo parecemos irados, e eu estou contente por não
haver ninguém nos observando. Será que ele, a testemunha indesejada, não
concluiria que dois jovens homens, de natureza demasiado romântica, estavam
prontos a duelar? Ambos amam a mesma mulher, ou um deles falou mal do outro.
Uma contenda familiar que se estende por gerações, uma questão de honra, um
jogo sanguinário por tudo ou nada. Só inimigos se olham assim. Vejam esses
lábios estreitos e descoloridos, esses dorsos nasais irreconciliáveis. Como
eles mastigam o ódio, esses sedentos de morte.
Nós somos amigos. Ainda que nossas profissões sejam tão diferentes
– Erich é chefe de sector em uma loja de departamentos, eu escolhi a profissão
bem paga do mecânico de precisão –, nós temos tantos interesses em comum
quantos são necessários para conceder durabilidade a uma amizade. Erich faz
parte do clube há mais tempo do que eu. Me lembro muito bem do dia em que,
vestido de maneira tímida e demasiado festiva, entrei no restaurante
frequentado pelos unilaterais, e Erich veio ao meu encontro, indicando o
guarda-roupa ao inseguro para depois dizer com sua voz:
– O senhor por certo quer vir até nós. Deixe o acanhamento
de lado; estamos aqui a fim de nos ajudarmos.
Acabo de dizer “unilaterais”. É assim que nós nos chamamos
oficialmente. Mas também essa nomeação, assim como grande parte dos estatutos,
me parece malograda. O nome não expressa com nitidez suficiente o que é que nos
une e, ao final de contas, também deveria nos fortalecer. Com certeza seria
melhor se fôssemos chamados, curto e grosso, de esquerdos, ou, mais
sonoramente, de irmãos da esquerda. Os senhores haverão de adivinhar por que
tivemos de abrir mão de mandar que nos registassem sob esse título. Nada seria
menos pertinente, e ainda por cima mais injurioso, do que nos compararmos com
aquelas pessoas, por certo dignas de pena, às quais a natureza privou da única
possibilidade humana de fazer justiça com as próprias mãos. Muito pelo
contrário, nós somos uma sociedade variegada, reunida ao acaso, e posso dizer
que nossas senhoras não ficam devendo nada em termos de beleza, charme e bons
modos a muita ambidestra, sim, caso a gente comparasse com cuidado, por certo
resultaria um quadro moral que faria algum pároco preocupado com a salvação da
alma da comunidade gritar de seu púlpito:
– Ah, fossem todos vós canhotos!
Esse nome fatal. Até mesmo nosso primeiro presidente, um
alto funcionário da municipalidade, do setor de cadastros, de inclinações e
lamentavelmente também de orientações um tanto patriarcais, de quando em vez
tem de explicar que nós não consideramos bom o fato de não ter a palavra
canhoto no nome e que não somos unilaterais nem pensamos, sentimos ou agimos de
maneira unilateral.
É claro que considerações de ordem política também tiveram
um papel importante quando nós rejeitamos as melhores propostas e escolhemos o
nome pelo qual no fundo jamais deveríamos ser chamados. Depois que os membros
do parlamento, partindo do centro, passaram a tender para um ou para outro lado
e as cadeiras das casas foram postas de maneira que tão-só a ordem das cadeiras
denuncia a situação política de nossa pátria, tornou-se hábito atribuir uma
radicalidade das mais perigosas a um escrito, a um discurso no qual a
palavrinha esquerda aparecesse mais de uma vez. Pois bem, no que diz respeito a
isso podemos ficar tranquilos. Se há um clube em nossa cidade que sobrevive sem
ambições políticas, apenas da ajuda e da sociabilidade mútua, então esse clube
é o nosso. E para enfim cortar pela raiz, de uma vez por todas, a sombra de
qualquer suspeita de desvio erótico, seja dito que encontrei minha noiva entre
as mocinhas de nosso grupo jovem. Assim que uma casa ficar livre para nós dois,
queremos nos casar. Caso algum dia desapareça de minha lembrança o último
resquício daquele primeiro encontro com o sexo feminino, será pura e
exclusivamente por causa da bondade de Monika.
Nosso amor não teve de enfrentar apenas os problemas
corriqueiros de outras relações, descritos à farta em vários livros, também
nosso sofrimento manual teve de ser machucado e praticamente esclarecido a fim
de que pudéssemos gozar nossa pequena ventura. Depois de termos tentado, em
nossa primeira e aliás compreensível confusão, dar prazer um ao outro com a
direita, e termos sido obrigados a perceber quão insensível era esse nosso lado
mouco, nós apenas nos acariciamos com jeito, quer dizer, assim como Deus nos
criou. Não vou fazer revelações demasiadas e também espero não ser indiscreto
se insinuo aqui que é a mão amada de Monika que sempre de novo me concede a
força para continuar firme e manter a promessa. Logo depois da primeira vez em
que fomos ao cinema juntos, tive de assegurar a ela que pouparia sua mocidade
intacta até que nos enfiássemos os anéis – aqui lamentavelmente cedendo e dando
forças à canhestrice de uma aptidão inata – nos dedos anelares da mão direita. Isso
que em países católicos do sul o sinal dourado do casamento é usado na
esquerda, coisa que por certo confirma o fato de naquelas zonas ensolaradas ser
antes o coração do que o juízo implacável quem governa. Talvez a fim de se
revoltar de modo feminino e provar como as mulheres são capazes de argumentar
de forma clara e evidente quando seus interesses estão em perigo, as damas mais
jovens de nosso clube, em zelosos trabalhos nocturnos, bordaram uma inscrição em
nossa bandeira verde: “O coração bate do lado esquerdo”.
Monika e eu já discutimos esse momento da troca de alianças
tantas vezes e mesmo assim sempre acabamos voltando ao mesmo resultado: não
podemos nos dar ao luxo de ser tomados como noivos em um mundo ignorante e
muitas vezes até maldoso, se há tempo já somos casados e dividimos tudo, tanto
o grande quanto o pequeno, um com o outro. Muitas vezes Monika chora por causa
dessa história das alianças. Por mais que nos sintamos alegres com esses nossos
dias, com certeza haverá um leve fulgor de tristeza descansando sobre todos os
presentes, sobre as mesas fartamente postas e festejos comedidos.
Eis que então Erich volta a mostrar seu rosto bom e normal.
Também eu cedo, mas mesmo assim continuo sentindo por algum tempo esse espasmo
na musculatura dos maxilares. Além disso, as têmporas continuam palpitantes.
Não, por certo essas caretas não ficam bem em nós. Nossos olhares se encontram
mais calmos e também por isso mais corajosos; nós fazemos mira. Cada um tem a
mão correta do outro em mente. Eu tenho certeza que não haverei de falhar; e
também posso confiar em Erich. Treinamos por muito tempo, quase a cada minuto
livre em uma cascalheira junto à praia, a fim de não fracassar hoje, dia em que
tantas coisas devem ser decididas.
Os senhores haverão de gritar que isso beira o sadismo, não,
que isso é auto-mutilação. Acreditem em mim, conhecemos todos esses argumentos.
Não é a primeira vez que estamos nesta sala vazia. Nos vimos armados assim
quatro vezes e quatro vezes deixamos, assustados com nossa intenção, as
pistolas apontarem ao chão. Só hoje alcançamos a clareza definitiva. Os últimos
acontecimentos de ordem pessoal e também na vida do clube nos dão razão: temos
de fazê-lo. Depois de muitas dúvidas – nós questionamos os pareceres do clube,
os desejos da ala extrema –, enfim decidimos ir às armas. Por mais lamentável
que isso possa parecer, nós já não suportamos mais. Nossa consciência exige que
nos distanciemos dos costumes dos camaradas do clube. É que o sectarismo acabou
se espalhando, e as fileiras dos mais razoáveis estão tomadas por lunáticos,
até mesmo por fanáticos. Alguns dão vivas à direita, outros fazem juras à
esquerda. O que eu jamais quis acreditar está acontecendo; lemas políticos são
gritados de uma mesa à outra, o culto repulsivo de pregar pregos com a mão
esquerda significando um juramento é tão praticado que algumas das reuniões da presidência
parecem orgias nas quais o mais importante é entrar em êxtase através de
batidas violentas e possessas. Ainda que ninguém ouse divulgá-lo em voz alta e
que a princípio os arruinados pelo vício até agora tenham sido expulsos sem
mais cerimónias, é impossível de negar: aquele amor falho e para mim totalmente
incompreensível entre membros do mesmo sexo também encontrou adeptos entre nós.
E, para dizer o pior: também minha relação com Monika foi abalada. Ela fica
junto de sua amiga, uma criatura delicada e instável, durante um tempo que me
parece demasiado. Demasiadas são suas acusações de que fui indulgente demais e
mostrei pouca coragem naquela história das alianças, para que eu possa
acreditar que ainda exista entre nós a mesma confiança e que ela permanece
sendo a mesma Monika que eu continuo, cada vez mais raramente, tendo nos
braços.
Agora Erich e eu procuramos respirar no mesmo ritmo. Quanto
mais coincidirmos também nisso, tanto mais certos estaremos de que nossa ação
está sendo conduzida pelo bom sentimento. Não devem acreditar que sejam as
palavras bíblicas que nos ordenam a arrancar o mal. É, muito antes, o desejo
quente e perpétuo de clarificar as coisas, a necessidade de saber com clareza o
que é de mim, se esse destino é imutável ou se nós temos à mão a possibilidade
de modificar nossa vida, apontando-lhe uma direção normal. Chega de proibições
idiotas, bandagens e truques do tipo. Direitos, nós queremos tomar posse de
nossa liberdade de escolha, não estar mais separados do geral por nada e ser
donos de uma mão afortunada.
Nossa respiração agora coincide. Sem darmos sinal um ao
outro, atiramos ao mesmo tempo. Erich acertou e também eu não o desiludi. Cada
um de nós, conforme o previsto, rompeu o tendão importante de tal modo que as
pistolas, seguradas com uma força que já era insuficiente, caíram ao chão
tornando qualquer tiro subsequente desnecessário. Nós rimos e começamos nossa
grande experiência, desajeitados, porque contamos apenas com a mão direita,
ajeitando as ataduras de emergência.
Gunter Grass
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