domingo, 12 de outubro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Cristo do Mar», por Anatole France.

12 de Outubro de 1924 morre o escritor francês Anatole France, Prémio Nobel da Literatura em 1921, autor de «Thais» e «Poemas Dourados».
Poet'anarquista
«O Cristo do Mar»
Cristo no Mar da Galileia/ Rembrandt

294- «O CRISTO DO MAR»

Naquele ano, vários pescadores de Saint-Valéry afogaram-se no mar. Os corpos, devolvidos à praia pela maré, foram encontrados junto com os restos dos seus barcos, e durante nove dias foram vistos, na trilha montanhosa que conduz à igreja, esquifes carregados nos ombros e acompanhados por viúvas em pranto, sob grandes mantos negros, como as mulheres da Bíblia. 

Assim, foram o patrão Jean Lenoel e seu filho Désiré depostos na grande nave, sob a mesma arcada a que haviam pouco antes pendurado, em oferenda à Santa Virgem, um navio com todo o seu massame. Tinham sido homens justos e tementes a Deus, e o abade Guillaume Truphème, vigário de Saint-Valéry, tendo-lhes absolvido, disse em lágrimas: 

- Jamais foram depostas em solo sagrado, para aí aguardarem o juízo de Deus, criaturas mais virtuosas e cristãos mais devotos que Jean Lenoé e seu filho Désiré. 

E enquanto os barcos com seus donos pereciam ao longo da costa, grandes navios soçobravam ao largo, e não se passava dia sem que o oceano produzisse algum destroço. Então, certa manhã, meninos que remavam num batel viram uma figura em decúbito à tona do mar. Era um Cristo, em tamanho de homem, esculpido em madeira dura, pintado em cores naturais, e parecia uma obra antiga. O Cristo flutuava nas águas de braços estendidos. Os meninos o guindaram para bordo e o conduziram a Saint-Valéry. A coroa de espinhos cingia-lhe a fronte. Os pés e as mãos estavam trespassados. Mas faltavam os cravos, assim como a cruz. Com os braços ainda abertos para oferecer-se e bendizer, tinha a mesma postura em que o haviam visto José de Arimateia e as santas mulheres no momento de o amortalhar. 

Os meninos o levaram ao vigário Truphème, que lhes disse: 

- Esta imagem do Messias é de valor antigo, e quem o executou certamente de há muito não pertence aos vivos. Ainda que os negociantes de Amiens e de Paris vendam hoje por cem francos, e até mais, estátuas primorosas, é necessário reconhecer que os artesãos de outrora tinham também o seu merecimento. Mas o que me alegra é sobretudo o pensamento de que, se o Salvador vem assim, de braços abertos, a Saint-Valéry, é para abençoar a paróquia tão cruelmente provada, e mostrar a sua piedade por essa pobre gente que na pesca arrisca a sua vida. Ele é o Deus que caminhou sobre as águas, e abençoou as redes de Cefas. 

E o cura Truphème, tendo mandado depositar o Cristo na igreja, sobre a toalha do altar-mor, tratou de encomendar ao carpinteiro Lemerre uma bela cruz em lenho de carvalho. 

Pronta esta, nela pregaram o Cristo com pregos novos, e o colocaram na nave, por sobre o banco dos mordomos. 

Foi então que se viu que os seus olhos estavam repletos de misericórdia e pareciam humedecidos por uma celeste compaixão. Um dos tesoureiros, que assistia à instalação do crucifixo, acreditou ver lágrimas correrem pela divina face. 

Na manhã seguinte, entrando com o acólito na igreja para dizer a missa, o vigário surpreendeu-se ao ver na parede a cruz vazia, e o Cristo deitado sobre o altar. 

Tão logo acabou de celebrar o santo ofício, mandou chamar o carpinteiro e perguntou-lhe por que ele havia tirado o Cristo da cruz. Mas o carpinteiro respondeu que não lhe havia tocado. E, depois de interrogar o sacristão e os fabriqueiros, o abade Truphème assegurou-se de que ninguém entrara na igreja desde o momento em que o Cristo fora dependurado. 

Ocorreu-lhe então que aquelas coisas fossem milagrosas, e meditou sobre elas com prudência. No domingo seguinte referiu-as na predica aos seus paroquianos, e convidou-os a contribuir com donativos para a erecção de uma nova cruz mais bela que a primeira e mais digna de suster o Redentor do mundo. 

Os pobres pescadores de Saint-Valéry deram todo o dinheiro que puderam, e as viúvas entregaram as suas alianças. Com o que o abade Truphème pôde ir imediatamente a Abbeville encomendar uma cruz de madeira negra, muito reluzente, encimada por uma tabuleta com a inscrição INRI em letras douradas. 

Dois meses mais tarde plantaram-na no lugar da primeira, e a ela pregaram o Cristo entre a lança e a esponja. 

Mas Jesus deixou-a como à outra, e foi, depois do anoitecer, estender-se sobre o altar. 

Ao encontrá-lo de manhã, o vigário caiu de joelhos e orou por muito, tempo. A notícia do milagre espalhou-se por toda a redondeza, e as damas de Amiens promoveram peditórios para o Cristo de Saint-Valéry. O abade Truphème recebeu de Paris dinheiro e joias, e a mulher do ministro da Marinha, Sra. Hyde de Neuville, enviou-lhe um coração de diamantes. Com todas essas riquezas, um ourives da Rue de Saint-Sulpice compôs, em dois anos, uma cruz de ouro e pedrarias, que foi inaugurada em meio a grande pompa na igreja de Saint-Valéry, no segundo domingo após a Páscoa do ano 18. 

Mas Aquele que não recusara o madeiro doloroso escapou-se daquela cruz tão rica e foi de novo estender-se sobre o linho branco do altar. 

Com medo de ofendê-lo, deixaram-no ficar desta vez, e ele ali repousava por mais de dois anos quando Pierre, filho de Pierre Caillou, veio dizer ao senhor cura Truphème que tinha encontrado na areia da praia a verdadeira cruz de Nosso Senhor. 

Pierre era um inocente, e como não tivesse entendimento bastante para ganhar a vida, davam-lhe pão, por caridade; e gostavam dele, porque era incapaz de fazer mal. Mas costumava engrolar coisas sem nexo, a que ninguém dava ouvidos. 

Contudo, o abade Truphème, que incessantemente matutava no mistério do Cristo do mar, deixou-se impressionar pelo que contara o pobre idiota. Com o sacristão e dois fabriqueiros, dirigiu-se ao lugar onde o rapaz afirmava ter visto uma cruz, e ali encontrou duas pranchas guarnecidas de pregos, que as vagas haviam rolado durante muito tempo, e que efectivamente formavam uma cruz. 

Eram detritos de um antigo naufrágio. Em uma das pranchas distinguiam-se ainda duas letras pintadas em preto, um J e um L, e não cabia duvidar que fosse um fragmento do barco de Jean Lenoel que, cinco anos antes, perecera no mar com seu filho Désiré. 

Vendo aquilo, o sacristão e os fabriqueiros começaram a rir de um inocente que tomava as tábuas esfaceladas de um barco pela cruz de Jesus Cristo. Mas o vigário Truphème lhes atalhou as zombarias. Ele meditara muito e muito orara desde que o Cristo do mar fizera a sua aparição em meio aos pescadores, e o mistério da infinita caridade começava a se lhe revelar. Ele ajoelhou-se na areia, recitou a oração pelos fiéis defuntos, depois ordenou ao sacristão e aos fabriqueiros que carregassem aos ombros o destroço e o depositassem na igreja. Feito isto, ergueu o Cristo de sobre o altar, colocou-o sobre as pranchas do barco e pregou-o, com suas próprias mãos, com os pregos corroídos pelo mar. 

Por ordem sua, a nova cruz ocupou, a partir do dia seguinte, sobre o banco dos mordomos, o lugar da cruz de ouro e pedrarias. E nunca mais o Cristo do mar dali se despregou. Aprouve-lhe permanecer naquele lenho sobre o qual homens morreram a invocar-lhe o nome e o de sua Mãe. E ali, entreabrindo a boca augusta e dolorosa, ele parece dizer: .A minha cruz é feita dos sofrimentos dos homens, pois em verdade vos digo que eu sou o Deus dos pobres e dos desvalidos...

Anatole France

Sem comentários:

Enviar um comentário