12 de Outubro de 1924 morre o escritor francês Anatole France, Prémio Nobel da Literatura em 1921, autor de «Thais» e «Poemas Dourados».
Poet'anarquista
«O Cristo do Mar»
Cristo no Mar da Galileia/ Rembrandt
294- «O CRISTO DO MAR»
Naquele ano, vários pescadores de Saint-Valéry afogaram-se
no mar. Os corpos, devolvidos à praia pela maré, foram encontrados junto com os
restos dos seus barcos, e durante nove dias foram vistos, na trilha montanhosa
que conduz à igreja, esquifes carregados nos ombros e acompanhados por viúvas
em pranto, sob grandes mantos negros, como as mulheres da Bíblia.
Assim, foram o patrão Jean Lenoel e seu filho Désiré
depostos na grande nave, sob a mesma arcada a que haviam pouco antes pendurado,
em oferenda à Santa Virgem, um navio com todo o seu massame. Tinham sido homens
justos e tementes a Deus, e o abade Guillaume Truphème, vigário de
Saint-Valéry, tendo-lhes absolvido, disse em lágrimas:
- Jamais foram depostas em solo sagrado, para aí aguardarem
o juízo de Deus, criaturas mais virtuosas e cristãos mais devotos que Jean
Lenoé e seu filho Désiré.
E enquanto os barcos com seus donos pereciam ao longo da
costa, grandes navios soçobravam ao largo, e não se passava dia sem que o
oceano produzisse algum destroço. Então, certa manhã, meninos que remavam num
batel viram uma figura em decúbito à tona do mar. Era um Cristo, em tamanho de
homem, esculpido em madeira dura, pintado em cores naturais, e parecia uma obra
antiga. O Cristo flutuava nas águas de braços estendidos. Os meninos o
guindaram para bordo e o conduziram a Saint-Valéry. A coroa de espinhos
cingia-lhe a fronte. Os pés e as mãos estavam trespassados. Mas faltavam os
cravos, assim como a cruz. Com os braços ainda abertos para oferecer-se e
bendizer, tinha a mesma postura em que o haviam visto José de Arimateia e as
santas mulheres no momento de o amortalhar.
Os meninos o levaram ao vigário Truphème, que lhes disse:
- Esta imagem do Messias é de valor antigo, e quem o
executou certamente de há muito não pertence aos vivos. Ainda que os
negociantes de Amiens e de Paris vendam hoje por cem francos, e até mais,
estátuas primorosas, é necessário reconhecer que os artesãos de outrora tinham
também o seu merecimento. Mas o que me alegra é sobretudo o pensamento de que,
se o Salvador vem assim, de braços abertos, a Saint-Valéry, é para abençoar a
paróquia tão cruelmente provada, e mostrar a sua piedade por essa pobre gente
que na pesca arrisca a sua vida. Ele é o Deus que caminhou sobre as águas, e
abençoou as redes de Cefas.
E o cura Truphème, tendo mandado depositar o Cristo na
igreja, sobre a toalha do altar-mor, tratou de encomendar ao carpinteiro
Lemerre uma bela cruz em lenho de carvalho.
Pronta esta, nela pregaram o Cristo com pregos novos, e o
colocaram na nave, por sobre o banco dos mordomos.
Foi então que se viu que os seus olhos estavam repletos de
misericórdia e pareciam humedecidos por uma celeste compaixão. Um dos
tesoureiros, que assistia à instalação do crucifixo, acreditou ver lágrimas
correrem pela divina face.
Na manhã seguinte, entrando com o acólito na igreja para
dizer a missa, o vigário surpreendeu-se ao ver na parede a cruz vazia, e o
Cristo deitado sobre o altar.
Tão logo acabou de celebrar o santo ofício, mandou chamar o
carpinteiro e perguntou-lhe por que ele havia tirado o Cristo da cruz. Mas o
carpinteiro respondeu que não lhe havia tocado. E, depois de interrogar o
sacristão e os fabriqueiros, o abade Truphème assegurou-se de que ninguém
entrara na igreja desde o momento em que o Cristo fora dependurado.
Ocorreu-lhe então que aquelas coisas fossem milagrosas, e
meditou sobre elas com prudência. No domingo seguinte referiu-as na predica aos
seus paroquianos, e convidou-os a contribuir com donativos para a erecção de uma
nova cruz mais bela que a primeira e mais digna de suster o Redentor do mundo.
Os pobres pescadores de Saint-Valéry deram todo o dinheiro
que puderam, e as viúvas entregaram as suas alianças. Com o que o abade
Truphème pôde ir imediatamente a Abbeville encomendar uma cruz de madeira
negra, muito reluzente, encimada por uma tabuleta com a inscrição INRI em
letras douradas.
Dois meses mais tarde plantaram-na no lugar da primeira, e a
ela pregaram o Cristo entre a lança e a esponja.
Mas Jesus deixou-a como à outra, e foi, depois do anoitecer,
estender-se sobre o altar.
Ao encontrá-lo de manhã, o vigário caiu de joelhos e orou
por muito, tempo. A notícia do milagre espalhou-se por toda a redondeza, e as
damas de Amiens promoveram peditórios para o Cristo de Saint-Valéry. O abade
Truphème recebeu de Paris dinheiro e joias, e a mulher do ministro da Marinha,
Sra. Hyde de Neuville, enviou-lhe um coração de diamantes. Com todas essas
riquezas, um ourives da Rue de Saint-Sulpice compôs, em dois anos, uma cruz de
ouro e pedrarias, que foi inaugurada em meio a grande pompa na igreja de
Saint-Valéry, no segundo domingo após a Páscoa do ano 18.
Mas Aquele que não recusara o madeiro doloroso escapou-se
daquela cruz tão rica e foi de novo estender-se sobre o linho branco do altar.
Com medo de ofendê-lo, deixaram-no ficar desta vez, e ele
ali repousava por mais de dois anos quando Pierre, filho de Pierre Caillou,
veio dizer ao senhor cura Truphème que tinha encontrado na areia da praia a
verdadeira cruz de Nosso Senhor.
Pierre era um inocente, e como não tivesse entendimento
bastante para ganhar a vida, davam-lhe pão, por caridade; e gostavam dele,
porque era incapaz de fazer mal. Mas costumava engrolar coisas sem nexo, a que
ninguém dava ouvidos.
Contudo, o abade Truphème, que incessantemente matutava no
mistério do Cristo do mar, deixou-se impressionar pelo que contara o pobre
idiota. Com o sacristão e dois fabriqueiros, dirigiu-se ao lugar onde o rapaz
afirmava ter visto uma cruz, e ali encontrou duas pranchas guarnecidas de
pregos, que as vagas haviam rolado durante muito tempo, e que efectivamente
formavam uma cruz.
Eram detritos de um antigo naufrágio. Em uma das pranchas
distinguiam-se ainda duas letras pintadas em preto, um J e um L, e não cabia
duvidar que fosse um fragmento do barco de Jean Lenoel que, cinco anos antes,
perecera no mar com seu filho Désiré.
Vendo aquilo, o sacristão e os fabriqueiros começaram a rir
de um inocente que tomava as tábuas esfaceladas de um barco pela cruz de Jesus
Cristo. Mas o vigário Truphème lhes atalhou as zombarias. Ele meditara muito e
muito orara desde que o Cristo do mar fizera a sua aparição em meio aos
pescadores, e o mistério da infinita caridade começava a se lhe revelar. Ele
ajoelhou-se na areia, recitou a oração pelos fiéis defuntos, depois ordenou ao
sacristão e aos fabriqueiros que carregassem aos ombros o destroço e o
depositassem na igreja. Feito isto, ergueu o Cristo de sobre o altar, colocou-o
sobre as pranchas do barco e pregou-o, com suas próprias mãos, com os pregos
corroídos pelo mar.
Por ordem sua, a nova cruz ocupou, a partir do dia seguinte,
sobre o banco dos mordomos, o lugar da cruz de ouro e pedrarias. E nunca mais o
Cristo do mar dali se despregou. Aprouve-lhe permanecer naquele lenho sobre o
qual homens morreram a invocar-lhe o nome e o de sua Mãe. E ali, entreabrindo a
boca augusta e dolorosa, ele parece dizer: .A minha cruz é feita dos
sofrimentos dos homens, pois em verdade vos digo que eu sou o Deus dos pobres e
dos desvalidos...
Anatole France
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