«Madame Teófila», por Théophile Gautier.
«Madame Teófila»
Poeta Francês Théophile Gautier
305- «MADAME TEÓFILA
Madame Teófila era uma gata avermelhada, de peito branco,
nariz cor-de-rosa e olhos azuis, assim
chamada porque vivia comigo numa perfeita intimidade, dormindo aos pés da minha
cama, fazendo a sesta no encosto da minha poltrona enquanto eu escrevia,
acompanhando-me ao jardim nos meus passeios, assistindo às minhas refeições e
interceptando, muitas vezes, o bocado que eu ia levar à boca.
Uma vez, um dos meus amigos, afastando-se por alguns dias,
confiou-me um papagaio, para que eu o guardasse enquanto durasse a sua
ausência. O pássaro, sentindo-se deslocado, subira até o alto do poleiro, e
circunvagava em torno, com ar desconfiado, aqueles olhos semelhantes a tachas
de latão, encarquilhando as membranas brancas que lhe servem de pálpebras.
Madame Teófila nunca vira em toda a vida um papagaio; e esse animal, novo para
ela, causava-lhe evidente surpresa. Imóvel, tão imóvel como um gato embalsamado
do Egito nas suas faixas, mirava o pássaro, reunindo com um ar de meditação
profunda todos os conhecimentos de história natural que pudera colher nos seus
passeios sobre o telhado, no quintal e no jardim.
A sombra de seus pensamentos passava-lhe pelas pupilas
móveis, e nelas pude ler este resumo do seu exame: “Decididamente, é um pinto
verde”.
Firme nesta conclusão, a gata saltou da mesa onde
estabelecera o seu observatório, e foi agachar-se a um canto da sala, com o
ventre por terra, os cotovelos para a frente, a cabeça baixa, o dorso estirado,
como a pantera negra do quadro de Gérome, espreitando as gazelas que vão beber
no lago.
O papagaio seguia os movimentos da gata com a inquietação
febril; eriçava as penas, mexia com a corrente, passava o bico pelo bordo do
vaso das comidas. Instintivamente, via ele na gata um inimigo, meditando e
planejando alguma peça. Quanto aos olhos da gata, fixos sobre o pássaro com uma
intensidade fascinadora, diziam, numa linguagem que o papagaio muito bem
compreendia: ”Não obstante ser verde, este pinto deve ser bom para comer!”
Eu seguia com interesse esta cena, pronto a intervir quando
fosse preciso. Madame Teófila aproximou-se insensivelmente: as narinas róseas
tremiam-lhe; e semicerrava os olhos, estendia e contraía as garras.
Calafrios corriam-lhe o dorso, como a um gastrónomo que
caminha para uma mesa bem servida; deleitava-se com a ideia do repasto
suculento e raro que ia fazer. Aquele manjar exótico aguçava-lhe o apetite.
De repente, seu dorso se encurvou como um arco retesado, e,
de um salto, ela foi cair prestemente sobre a gaiola. O papagaio, vendo o
perigo, com uma voz baixa, grave e profunda como a de um filósofo, gritou: “Já
almoçaste, Jacquot?”
Esta frase causou um indizível terror à gata, que
imediatamente saltou para trás. Uma fanfarra de clarins, um monte de pratos
despedaçando-se, o estampido de uma espingarda nos ouvidos, não lhe teriam
causado mais vertiginoso medo. Todas as suas idéias ornitológicas
esboroavam-se.
— Quê? manjar do rei?
— continuou o papagaio.
A fisionomia da gata exprimia claramente: “Não é um pinto, é
um homem; ele fala!”
“Quando eu bebo um pouco mais, no botequim tudo dança”,
cantou o pássaro com estrondos de voz ensurdecedores, como se houvesse
compreendido que a sua palavra era o seu melhor meio de defesa. A gata
lançou-lhe um olhar cheio de interrogações, e, não recebendo resposta
satisfatória, foi estender-se na cama, de onde não saiu todo o resto do dia.
As pessoas que não têm o hábito de tratar com os animais pensarão
talvez que estou emprestando intenções à ave e ao quadrúpede. Mas não fiz mais
do que traduzir fielmente suas ideias em linguagem humana...
No dia seguinte, Madame Teófila, um pouco serenada, ensaiou
um novo ataque e foi repelida pelo mesmo processo. Deu-se por satisfeita e
aceitou o pássaro como homem.
Théophile Gautier
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