«Caso de Chá»
Maconha
314- «CASO DE CHÁ»
A casa da velha senhora fica na encosta do morro, tão bem
situada que ali se aprecia o bairro inteiro, e o mar é uma de suas riquezas
visuais. Mas o terreno em volta da casa vive ao abandono. O jardineiro
despediu-se há tempos; hortelão, não se encontra nem por milagre. A velha
moradora resigna-se a ver crescer a tiririca na propriedade que antes era um
brinco. Até cobra começou a passear entre a folhagem, com indolência; é uma
cobrinha de nada, mas sempre assusta.
O verdureiro que faz ponto na rua lá em baixo ofereceu-se
para matá-la. A boa senhora reluta, mas não pode viver com uma cobra tomando
banho de sol junto ao portão, e a bicha é liquidada a pau. Bom rapaz, o
verdureiro, cheio de atenções para com os fregueses. Na ocasião, um problema o
preocupa: não tem onde guardar à noite a carrocinha de verduras.
– Ora, o senhor pode guardar aqui em casa. Lugar não falta. – Muito
agradecido, mas vai incomodar a madame.
– Incomoda não, meu filho.
A carrocinha passa a ser recolhida nos fundos do terreno. Todas as manhãs o
dono vem retirá-la, trazendo legumes frescos para a gentil senhora. Cobra-lhe
menos e até não cobra nada. Bons amigos.
– Madame gosta de chá?
– Nâo posso tomar, me dá dispepsia, me põe nervosa.
– Pois eu sou doido por chá. Mas está tão caro que nem tenho coragem de
comprar. Posso fazer um pedido? Quem sabe se a madame, com esse terreno todo
sem aproveitar, não me deixa plantar uns pés, pouquinha coisa, só para o meu
consumo?
Claro que deixa. Em poucas horas o quintal é capinado, tudo ganha outro
aspecto. Mão boa é a desse moço: o que ele planta é viço imediato. A pequenina
cultura de chá torna alegre outra vez a terra abandonada. Não faz mal que a
plantação se vá estendendo por toda a área. A velha senhora sente prazer em
ajudar o bom lavrador. Alegando que precisa fazer exercício, caminhando com
cautela pois enxerga mal, ela rega as plantinhas, que lhe agradecem a atenção
prosperando rapidamente.
– Madame sabe: minha intenção era colher só uma pequena quantidade. Mas o chá
saiu tão bom que os parentes vivem me pedindo um pouco e eu não vou negar a
eles. É pena madame não experimentar. Mas não aconselho: se faz mal, não deve
mesmo tocar neste chá. O filho da velha senhora chegou da Europa esta noite. Lá
ficou anos estudando. Achou a mãe lépida, bem disposta.
– E eu trabalho, sabe, meu querido? Todos os dias rego a plantação de chá que
um moço me pediu licença para fazer no quintal. Amanhã de manhã você vai ver a
beleza que está.
O verdureiro já havia saído com a carrocinha. A senhora estende o braço, mostra
com orgulho a lavoura que, pelo esforço em comum, é também um pouco sua. O
filho quase caiu duro:
– A senhora está maluca? Isso nunca foi chá, nem aqui nem na Índia.
Isso é
maconha, mamãe!
Carlos Drummond de Andrade
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