«A Harpa»
Harpista Egípcia
288- «A HARPA»
Era a vez do Luciano. Curvou-se, pôs o joelho em terra e
apontou o berlinde. Atento, Júlio esperou. Mas o golpe demorava. Luciano
parecia alhear-se cada vez mais da jogada, como se escutasse qualquer ruído
distante. Acabou por erguer a cabeça.
Estrada abaixo, Lena corria de braços abertos. Vinha de
sapatos pretos, meias pretas, bibe preto. E, sobre os cabelos claros, um grande
laço preto.
Toda ela vestia de luto carregado. Mas os seus movimentos
eram leves e cheios de vivacidade. Passou, sentindo o prazer da corrida, airosa
e veloz. O vento abriu-lhe o bibe e, por momentos, apareceu a descoberto o colo
muito branco que formava com o rosto uma mancha alva no meio do luto.
-Parece uma andorinha -disse Júlio.
Os dois garotos iam virando a cabeça e seguiam-na com os
olhos. Nenhum sabia ao certo se ela os vira, embora a ambos parecesse que Lena
os havia olhado de soslaio.
Luciano continuava de joelhos no pó alvacento do largo.
Sempre a correr, Lena ia agora saltando, ora sobre um pé, ora sobre o outro.
Por fim, desapareceu na curva da rua, a caminho de casa da madrinha.
Luciano voltou-se. Apontou o berlinde entalado entre os dedos, desfechou o golpe, e falhou. Júlio, já de joelho no chão, preparava-se para jogar, quando Luciano levantou a pequena esfera e disse:
-Não jogo mais.
Júlio viu-o ir sentar-se à sombra. Aproximou-se:
-Ficaste zangado, hem?
-Eu?
-Pois! -acrescentou Júlio.
-Ela passou sem olhar para ti.
-Quero lá saber disso!
-Então porque deixaste de jogar?
Luciano olhou-o de revés, por cima do ombro. Mas nada
respondeu. Esticou as pernas, foi-se voltando, e acabou por ficar estendido
sobre o passeio, com o queixo encostado aos punhos.
Júlio curvou-se e começou a desenhar com o dedo sobre o pó
do largo. Parecia completamente absorvido. Súbito, a mão parou-lhe:
-Não te percebo. Ela anda sempre à tua volta, e tu corres
com ela; agora, que passou sem te olhar, ficaste danado.
-Fiquei nada! -cortou Luciano. Júlio sorriu com tristeza:
-Bem vi que ficaste.
Voltou a correr com o dedo sobre o pó: -Se fosse comigo, já eu
a namorava.
-Tu?
-Sim... É bem bonita, a Lena...
Luciano ergueu o tronco, recolheu as pernas, e sentou-se:
-Se achas que ela é assim tão bonita, porque é que não a
namoras? Júlio curvou-se ainda mais para o chão:
-Ela só gosta de ti...
-Quem te disse isso?
-Ninguém -respondeu Júlio, encolhendo os ombros.
-Mas vê-se muito bem.
- Não. . -murmurou Luciano, logo acrescentando, com
vivacidade.
- Não, eu não gosto nada da família dela. É uma gente que
nem eu sei!
-Mas que tem que ver com isso a família dela?
-Tem muito. Uma pessoa ou gosta de uma família toda ou não
gosta de ninguém dessa família.
Júlio esqueceu os desenhos sobre a poeira.
-Mas, eu... -começou ele, hesitante -, eu não gosto nada da
família da Lena, e gosto dela.
-Isso és tu.
E Luciano, com um ar superior, voltou a estender-se ao
comprido sobre o passeio. Um carreiro de formigas passava-lhe perto do nariz e,
como Júlio nada mais dissesse, entretido a riscar de novo o pó, Luciano pôs-se
a observar as evoluções das formigas. Assim estavam, quando Lena apareceu.
Corria como se fosse direitinha para casa, mas, dando uma larga viragem,
começou a andar às voltas pelo largo. Júlio seguia-a com os olhos. Luciano
olhava para o carreiro das formigas.
Lena ia abrindo cada vez mais os círculos; passava agora
muito perto do passeio. No entanto, fazia-o como se não desse pela presença dos
rapazes. Pulava, abria os braços, rodava sobre os calcanhares, ora vagarosa,
ora rápida. Tudo isto parecia ser feito com um fim especial. Mas, como não
alcançasse nenhum resultado, Lena, ao descrever a última volta, quase pisou o
carreiro das formigas.
-Olha! -exclamou ela, numa exagerada surpresa. -Um carreiro
de formigas!
-E das grandes! -disse Júlio, rapidamente.
Luciano continuava a olhar para as formigas como se em nada
tivesse reparado. Lena curvou-se, cruzando os braços atrás das costas:
-Essas são das que mordem, não são?
-Sim -respondeu Júlio -mas não dói nada.
-Mordem muito, não é? -repetiu Lena, sem tirar os olhos de
Luciano. Júlio voltou o rosto e pôs-se a olhar em frente. Luciano continuava
imóvel, de pálpebras caídas. Lena estendeu o braço e Luciano viu-lhe o dedo
esticado aproximar-se, a medo, do carreiro. Ergueu a cabeça:
-Que queres tu daqui? Vai-te embora. -Nada... eu não quero
nada -respondeu Lena endireitando o busto, sem se afastar. -Estava a ver as
formigas... Luciano levantou-se:
-Já te disse que te fosses embora. Lena ergueu para ele os
grandes olhos azuis. Depois baixou a cabeça; o enorme laço preto pendeu-lhe
para a testa de mistura com os caracóis. E, muito vagarosamente, de braços
caídos, afastou-se, a caminho de casa.
Apesar de todos os motivos invocados e até, por fim, da
recusa formal, a avó não cedeu e Luciano teve que acompanhá-la. Ia
desesperado. Não gostava nada de fazer visitas e, agora, a avó levava-o, à viva
força, àquela casa onde nunca entrara, a visitar uma gente que, embora somente
conhecesse de vista, tão antipática lhe era!
Durante o trajecto, tomou uma resolução: apenas daria as boas-tardes, nem mais uma palavra.
Durante o trajecto, tomou uma resolução: apenas daria as boas-tardes, nem mais uma palavra.
Depois do largo, avistou a casa, um antigo e enorme prédio,
meio em ruínas. Erguia-se, desamparado, no meio dum quintal cujo muro havia
derruído com o tempo. As paredes sujas e carcomidas, de janelas sempre
cerradas, vidros poeirentos, aumentavam-lhe ainda mais o sombrio ar de
abandono. Desprendia-se de todo o edifício um tão misterioso e recolhido
silêncio que, na ideia de Luciano, lá por dentro, através de tenebrosos
corredores, Lena, vestida de luto, errava, aterrada, constantemente perseguida
pelo severo olhar dos pais.
Ao chegar junto da porta, enquanto a avó erguia o batente,
pensou fugir. Voltou-se, abrindo os braços -mas uns dedos secos poisaram-lhe
sobre os ombros; a voz sibilada da avó fê-Io estacar: -Luciano!
A porta descerrou-se, gemendo. E Luciano entrou pela
primeira vez na casa de Lena.
Pelo corredor escuro, onde os passos se sumiam, abafados,
uma velha de rosto meio oculto no lenço negro levou-os para a sala.
-Vou avisar os senhores.
E desapareceu, sem ruído, toda curvada.
Luciano sentou-se, inquieto, como se tivesse passado
subitamente do dia para a noite. Quando se habituou à pouca luz, ergueu-se,
olhando em volta, tomado de surpresa.
Nesse instante, os pais de Lena entravam, seguidos pela
filha. Luciano disse:
-Boa tarde.
Baixando a cabeça, tornou a sentar-se.
Enquanto falaram dele não mudou de posição. Só muito depois,
quan- do a conversa incidia sobre outro assunto -a avó pedia desculpa de há
tanto tempo ali não vir -pensou que era altura de olhar de novo para as paredes
e para o chão. Pensou também que devia fazê-Io com cautela, de modo que ninguém
desse por isso. Mas, por mais cuidados que usasse, tinha a certeza de que Lena
havia de estar a olhar para ele.
Começou a erguer o rosto vagarosamente. Uma profusão de
objectos que nunca vira enchiam as paredes. Zagaias cruzavam-se por todos os
lados, aqui e além, lanças compridas e ferrugentas, os escudos redondos,
pretos, com embutidos vermelhos, penachos amarelos, armados sobre tiras de
coiro, catanas recurvas, mocas. No chão, figuras agressivas, talhadas em
troncos negros, com olhos de vidro, oblíquos. A própria mesa, escura, de pés
retorcidos, gordos, era pesada, soturna. E, na obscuridade, evolava-se de tudo
aquilo uma distante e terrível ameaça. Obcecado pelo estranho encantamento,
Luciano, a pouco e pouco, caiu numa grande lassidão; olhava para tudo como se
sonhasse. Cada vez mais ia avolumando a vaga sensação de qualquer coisa sem
princípio nem fim - dir-se-ia que o tempo tinha parado para sempre naquela
casa. E, na penumbra, como que vinda de longe, a voz do pai de Lena chegava-lhe
agora aos ouvidos, muito branda e muito nítida:
-Sinto ainda, como se fosse neste momento, a morte de todos
eles... E tudo tão de repente; meus irmãos, meus pais, os meus filhos, os meus
pobres filhos... Todos se foram, todos... -Eduardo -pedia suavemente a mulher-
não te mortifiques...
-Mas, Maria, tu sabes bem que penso neles a toda a hora.
Logo se tornou quase incompreensível a Luciano tudo quanto diziam; apenas
adivinhava, no murmúrio arrastado das palavras, um lento, longo diá- logo de
recordações. A custo, volveu a cabeça, procurando Lena pela sala. Ela estava
sentada entre o pai e a mãe, e o seu rosto claro sobressaía, num sorriso. O
Luciano serenou. Mas, de súbito, viu quanto eram velhos os pais de Lena. A
mulher estava cheia de rugas, o homem tinha os cabelos brancos.
-Sim, sim... -dizia a avó naquele instante -que grande
saudade eu tenho desse tempo... -Como tudo passa... -disse o homem.
-Tudo... -murmurou a mãe de Lena. Pelo canto dos olhos,
Luciano espreitou a escultura que lhe ficava mais perto. Foi voltando o rosto
até a olhar de frente. Por muito tempo, ficou preso do homúnculo de madeira
negra, rugosa. Custou-lhe desviar a vista. E, quando o conseguiu, ainda trazia
nos olhos aquela expressão implacável, a um tempo feroz e repousada. Viu o pai
de Lena levantar-se, ir a um canto e arrastar, com grande esforço, uma enorme
caixa preta que roçava pelo chão com um ruído gemebundo.
- É melhor não, Eduardo ciciou a mulher.
-Não faz mal. Apenas um pouco, não faz mal -respondeu ele.
E, voltando-se: -Lembra-se? Luciano nem ouviu a resposta da avó. Inquieto, não
despegava os olhos da alta caixa negra. O pai de Lena abraçava-a com tanta
tristeza como se dentro estivesse o cadáver de um ente querido. Abriu-a
cuidadosamente, 0 puxou para fora um objecto que Luciano desconhecia e,
sentando-se, inclinou-o para o peito. O homem concentrou-se, de olhos
semicerrados. Estendeu a mão, e feriu uma das cordas metálicas alinhadas de
alto a baixo. Um som claro repercutiu na sala. Logo outro se seguiu. espaçado.
Outro soou. E. lenta, uma harmonia alongou-se, sonora e grave. Era qualquer
coisa de muito triste e dolorosa para o pai de Lena; a própria lentidão dos
gestos o tornava mais desolado. Parecia que nada poderia impedir tanta
amargura. Nada. Estava de cabeça caída, os dedos iam desfiando o desgosto, um
frio e duro desgosto -quando a outra mão correu, rápida, sobre as cordas.
Fez-se um sussurro suave, de notas límpidas, uma fugaz alegria que, mais altos,
os tons graves apagaram. Mas, de novo, o sussurro voltou, tornou-se nítido. E
correu, livre, como uma alegria que transborda e se solta. A água de um rio
deslizando ao sol, sobre pedras brancas. Uma dança de raparigas, risos, lábios
vermelhos. O homem mexia nervosamente os dedos, sacudia a cabeça, quando a
amarga tristeza voltou, ressoando passo a passo. Mas já com ela se misturava o
alegre sussurro. E morria: apenas a saudade ecoava. Uma profunda saudade.
Então, o pai de Lena, desnorteado, começou a misturar tudo: alegria e dor,
desolação e esperança. Tirava das cordas tudo quanto lhe afogava o coração.
Ansiado e desorientado, enrodilhava os dedos. E ia ficando só a dor e a
alegria. A dor e a alegria em todas as cordas. Um enovelado de sons cada vez
mais alto, como se alguém chorasse. Um choro de dor e de alegria que
repentinamente se calou, com um grande soluço morrendo pela sala. Luciano
estava de pé, mãos soerguidas. No rosto afogueado, os olhos negros, parados,
profundos como num sonho, fitavam o pai de Lena.
No outro dia, ao sair da escola, Luciano largou a correr e
só parou em casa. Foi ao quarto, abriu a arca, e tirou lá do fundo um velho
punhal de cabo recurvo, negro com embutidos doirados. Apertou-o carinhosamente
entre as mãos, como se acariciasse um tesoiro. Era a sua maior fortuna. Fora do
avô o punhal, e Luciano apenas consentira em mostrá-lo a raros amigos. Olhou-o
de novo com ternura.
Rápido, meteu-o debaixo do bibe, entalado entre o calção e
a camisa, e desandou para o largo. Ao vê-lo chegar, Júlio desafiou-o:
-Queres jogar à malha?
-Não.
-Então, jogamos ao berlinde.
-Também não.
O Júlio fitou-o, admirado. Só então reparou que o amigo
olhava para a casa de Lena. Foi sentar-se na beira do passeio. Daí observava
Luciano e parte da estrada. Ao sentir-se espiado, Luciano atravessou o largo e
sentou-se no passeio fronteiro. Mas ergueu-se logo. Lena acabava de sair de
casa e abria os braços, correndo, estrada abaixo. 10 Cada um do seu lado, os
dois garotos viram-na entrar no largo, passar, e foram voltando a cabeça até a
deixarem de ver. Ambos pensaram que ela devia estar, agora, a bater à porta da
casa da madrinha. A espaços olhavam-se disfarçadamente. Daí a pouco, Lena
voltou, caminhando a passo. Luciano levantou-se:
-Olá, Lena! A rapariga estacou, surpreendida. Compôs o laço
negro, e aproximou- -se, muito séria: -Olá, Luciano. No outro lado, junto das
faias, Júlio ergueu-se. Com um olhar magoado, observou-os. Depois, afastou-se e
saiu do largo.
Luciano olhava para o chão:
-Queria pedir-te uma coisa... -Que é?
-Tu fazes o que eu te pedir?
-Faço.
Luciano fitou Lena nos olhos. Pôs-lhe a mão no ombro:
-Então, vem daí comigo.
Avançaram pela estrada. Em frente da velha casa, Luciano
meteu a mão debaixo do bibe e tirou o punhal:
-Toma, Lena. É para o teu pai. Ele pode pô-lo lá nas
paredes, junto dos outros.
Lena hesitava.
-Leva-lho! -ordenou Luciano. -Eu já gosto do teu pai.
A rapariga obedeceu. Ia a chegar junto da porta, quando
Luciano a chamou:
-Também quero dizer-te uma coisa...
Tinha o rosto vermelho. Mas, ganhando coragem, ergueu a
cabeça e disse:
- Gosto muito de ti.
E Lena, com o punhal sobre as palmas das mãos abertas,
Manuel da Fonseca
Manuel da Fonseca
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