«O Cão Achado», por José Saramago.
O escritor português, e Prémio Nobel da Literatura José Saramago, nasceu na Golegã, Azinhaga, a 16 de Novembro de 1922.
Poet'anarquista
«O Cão Achado»
José Saramago e o seu cão Camões,
no qual o
escritor português se inspirou para criar O Achado
(cão que aparece
na casa do oleiro Cipriano Algor, protagonista de A Caverna)
329- «O CÃO ACHADO»
[Excerto do Romance «A Caverna»]
Vou a um negócio de
homens, desta vez tens de ficar em casa, disse Cipriano Algor ao cão, que
correra para ele quando o viu aproximar-se da furgoneta. É claro que o Achado
não necessitava que o mandassem subir, bastava que lhe deixassem aberta a porta
do carro o tempo suficiente para perceber que não o expulsariam depois, mas a
causa real da sobressaltada corrida, por muito estranho que possa parecer, foi
ter ele suposto, em sua ansiedade de cão, que o iam deixar sozinho. Marta, que
saíra para o terreiro conversando com o pai e o acompanhava à furgoneta, tinha
na mão o sobrescrito com os desenhos e a proposta, e embora o cão Achado não
tenha ideias claras sobre o que são e para que servem sobrescritos, propostas e
desenhos, conhece da vida, em todo o caso, que as pessoas que se dispõem a
entrar em carros costumam levar consigo coisas que, em, geral, mesmo antes de
para eles subirem, atiram para o banco de trás. Instruído por estas
experiências, percebe-se que a memória do Achado o tenha levado a pensar que Marta
iria acompanhar o pai nesta nova saída da furgoneta.
Apesar de estar aqui há
poucos dias, não tem dúvidas de que a casa dos donos é a sua casa, mas o seu
sentido de propriedade, por incipiente, ainda não o autoriza a dizer, olhando
em redor, tudo isto é meu.
Aliás, um cão, seja qual for o tamanho, a raça e o carácter, jamais se atreveria a pronunciar palavras tão brutalmente possessivas, diria, quando muito, tudo isto é nosso, e ainda assim, revertendo ao caso particular destes oleiros e dos seus bens móveis e imóveis, o cão Achado nem daqui a dez anos será capaz de ver-se a si mesmo como terceiro proprietário. O máximo a que talvez consiga chegar quando for cão velho é ao obscuro e vago sentimento de participar em algo arriscadamente complexo e, por assim dizer, de escorregadias significações, um todo feito de partes em que cada uma é, ao mesmo tempo, a parte que é e o todo de que faz parte. Ideias aventurosas como esta, que o cérebro humano, grosso modo, é mais ou menos capaz de conceber, mas que logo tem uma enorme dificuldade em trocar por miúdos, são o pão nosso de cada dia nas diferentes nações caninas, quer de um ponto vista meramente teórico quer no que se refere às suas consequências práticas. Não se pense, contudo, que o espírito dos cães é como uma nuvem bonançosa que levemente passa, uma alvorada primaveral de suave luz, um tanque de jardim com cisnes brancos vogando, se o fosse não teria o Achado começado, de repente, a ganir lastimeiro, E eu, e eu, dizia ele. Para responder a tal desgarramento de alma aflita, não tinha achado Cipriano Algor, apreensivo como ia pela responsabilidade da missão que o levava ao Centro, melhores palavras que desta vez ficas em casa, o que valeu ao angustiado animal foi ter visto Marta dar dois passos atrás depois de ter entregado o sobrescrito ao pai, assim ficou o Achado ciente de que não o iriam deixar sem companhia, na verdade, mesmo constituindo cada parte, de per si, o todo a que pertence, como cremos que já deixámos demonstrado por a + b, duas partes, desde que estejam unidas, fazem muita diferença no total. Marta acenou ao pai um cansado gesto de adeus e voltou para casa. O cão não a seguiu logo, ficou à espera de que a furgoneta, depois de descer a ladeira para a estrada, desaparecesse por trás da primeira casa da povoação. Quando daí a pouco entrou na cozinha, viu que a dona estava sentada na mesma cadeira em que tinha trabalhado durante estes dias.
Passava os dedos pelos olhos uma, e outra vez como se precisasse de aliviá-los
de uma sombra ou de uma dor. Decerto por estar no tenro verdor da mocidade,
Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas
sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto,
considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho
caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou
que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe
docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais idoso, e por essa razão, supondo
que a idade está obrigada a suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o
cinismo que não pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas
isso deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de que, em
assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído.
Comovida, Marta passou-lhe devagar a mão pela cabeça, acariciando-o, e, como
ele não se retirava e continuava a olhá-la fixamente, pegou num carvão e
começou a riscar no papel os primeiros traços de um esboço. Ao princípio, as
lágrimas impediam-na de ver bem, mas, pouco a pouco, ao mesmo tempo que a mão
ganhava segurança, os olhos foram aclarando, e a cabeça do cão, como se
emergisse do fundo de uma água turva, apareceu-lhe na sua inteira beleza e
força, no seu mistério e na sua interrogação. A partir deste dia, Marta vai
querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano.
José Saramago
Sem comentários:
Enviar um comentário