«A Aia»
Mãe Proletária/ David Sequeiros
339- «A AIA»
Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino
abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes,
deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu
berço, dentro das suas faixas.
A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de
conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros
apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos,
trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado
por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.
A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda
desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou
ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos
inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o
defendesse, forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo
do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só
a realeza por causa dos seus tesoiros, e que havia anos vivia num castelo sobre
os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no
seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama,
senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de oiro
fechado na mão!
Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um
escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos
tinham nascido na mesma noite de Verão. O mesmo seio os criara. Quando a
rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo
louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo
negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o
berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e
de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se
um era o seu filho, o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião
dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo
rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que
a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora
reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e
cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido
com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam,
nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por
seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a
fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus
perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas
vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa
infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do
tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e
coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu
rochedo entre os alfanges da sua borda! Pobre principezinho da sua alma! Com
uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava ao lado, era
para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua
indigência, nada tinha a recear a vida.
Desgraças, assaltos da sorte má nunca o
poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali
no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A
existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada
que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a
alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como
se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de
beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos
do seu príncipe.
No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora
reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no
cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e
aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade
tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais
altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma
espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa
apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele
a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que
estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia
pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a
adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou,
mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos
vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás,
escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos
pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre
lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da
galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas… Num relance
tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar
o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o
príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e,
tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no
berço real que cobriu com um brocado.
Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um
manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que
erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam,
arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro, e, abafando os seus
gritos no manto, abalou furiosamente.
O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no
silêncio e na treva.
Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas
janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater
das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias,
gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas
desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada,
muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga… O príncipe
lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda
a face entre os seus cabelos de oiro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro,
como cai um corpo morto.
E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore.
Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém,
mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o
palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, ele e
vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de
sangue. Mas, ai! dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também
envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!
Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a
rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho
mostrar, o príncipe que despertara.
Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?… Lá
estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara!
Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe,
mandara à morte o seu filho… Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua
alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou
irmã do seu coração… E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio
uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada
magnificamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.
Mas como? Que bolas de oiro podem pagar um filho? Então um
velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesoiro real, e escolhesse
de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesoiros da
Índia, todas as que o seu desejo apetecesse…
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de
mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim
conduzida para a Câmara dos Tesoiros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam,
num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes.
As espessas portas do Tesoiro rodaram lentamente. E, Quando um servo destrancou
as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos
de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de oiro e pedrarias! Do
chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam,
cintilavam, refulgiam os escudos de oiro, as armas marchetadas, os montões de
diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas
daquele reino, acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo — ah! —
lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um
silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa.
A ama
não se movia… Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para
aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de oiro. Era lá, nesse céu
fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se
erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!…
E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento
mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que
punhado de rubis ia ela escolher?
A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um
molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo
cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão,
apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha,
a multidão, e gritou:
— Salvei o meu príncipe, e agora… vou dar de mamar ao meu
filho
E cravou o punhal no coração.
Eça de Queirós
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