quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

CARTOON versus DÉCIMA

Saúde e Dinheiro para 2015

HenriCartoon

«SAÚDE E DINHEIRO PARA 2015»

- Para 2015… tenham muita saúde!
- Ouve cá o Zé… e então dinheiro
Prós medicamentos em  primeiro?
- Verdade… precisa-se dele amiúde
Ou depressa vamos ter ao ataúde…
- Antes morrer de rastilho na mão,
Que esperar a morte sem um tostão!
- Por falar nisso… e como vamos abrir
Aquele rico baú que nos quer acudir?
- Fogo!... (saiu pla culatra a explosão!)

POETA

OUTROS CONTOS

«História do Ano-Novo»
Votos para 2015

375- «HISTÓRIA DO ANO-NOVO»

A primeira comemoração, chamada de«Festival de Ano-Novo» ocorreu na Mesopotâmia por volta de 2.000 a. C. Na Babilónia, a festa começava na ocasião da lua nova indicando o equinócio da Primavera, ou seja, um dos momentos em que o Sol se aproxima da linha do Equador onde os dias e noites tem a mesma duração.

No calendário actual, isto ocorre em meados de Março (mais precisamente em 19 de Março, data que os espiritualistas comemoram o Ano-Novo Esotérico).

Os assírios, persas, fenícios e egípcios comemoravam o Ano-Novo no mês de Setembro (dia 23). Já os gregos, celebravam o início de um novo ciclo entre os dias 21 ou 22 do mês de Dezembro.

Os romanos foram os primeiros a estabelecerem um dia no calendário para a comemoração desta grande festa (753 a.C. - 476 d.C.) O ano começava em 1 de Março, mas foi trocado em 153 a. C. para 1 de Janeiro e mantido no calendário juliano, adotado em 46 a. C. Em 1582 a Igreja consolidou a comemoração, quando adoptou o calendário gregoriano.

Alguns povos e países comemoram em datas diferentes. Ainda hoje, na China, a festa da passagem do ano começa em fins de Janeiro ou princípio de Fevereiro. Durante os festejos, os chineses realizam desfiles e fogos pirotécnicos.

No Japão, o Ano-Novo é comemorado do dia 1 de Janeiro ao dia 3 de Janeiro.

A comunidade judaica tem um calendário próprio e a sua festa de Ano-Novo ou Rosh Hashaná, - «A Festa das Trombetas" -, dura dois dias do mês Tishrê, que ocorre em meados de Setembro ao início de Outubro do calendário gregoriano.

Para os islâmicos, o ano-novo é celebrado em meados de Maio, marcando um novo início. A contagem corresponde ao aniversário da Hégira (em árabe, emigração), cujo Ano Zero corresponde ao nosso ano de 622, pois nesta ocasião, o profeta Maomé, deixou a cidade de Meca estabelecendo-se em Medina.

A passagem de Ano Novo é o fim de um ciclo, início de outro. É um momento sempre cheio de promessas. E os rituais alimentam os nossos sonhos e dão vida às nossas celebrações. Na passagem de Ano Novo, não podemos deixar de aproveitar a oportunidade para enchermos o coração de esperança e começar tudo de novo. E para que a festa corra muito bem, há algumas tradições e rituais que não podemos esquecer...

- Fogos e barulho. No mundo inteiro o Ano Novo começa entre fogos de artifício, buzinadas, apitos e gritos de alegria. A tradição é muito antiga e, dizem, serve para espantar os maus espíritos. As pessoas reúnem-se para celebrar a festa com muitos abraços.- Roupa nova. Vestir uma peça de roupa que nunca tenha sido usada combina com o espírito de renovação do Ano Novo. O costume é universal e aparece em várias versões, como trocar os lençóis da cama e usar uma roupa interior nova.

Contagem decrescente aos últimos minutos do dia 31 de Dezembro de 2014: 

10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1…

Feliz 2015!!!!! 

MÚSICAS DO MUNDO

E as músicas de hoje são...

FLAT LAND - «Rufio's Last Stand»
Rufio's Last Stand by Flat Land on Grooveshark
Poet'anarquista

FLAT LAND - «Hypnotize Me»
Hypnotize Me by Flat Land on Grooveshark
Poet'anarquista

Bom Ano-Novo para todos os amigos e visitantes do Poet'anarquista!!!

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

CARTOON versus OITAVA

Votos
HenriCartoon

«VOTOS»

- O que desejas pra 2015,
Minha querida netinha?
- Paz, amor e famazinha...
 Dar um pontapé na crise!
 E que pede o avozinho
Ao 2015 quase aparecido?
- Peço que seja atendido
Na saúde com respeitinho!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

RAINBOW - «The Shed (Subtle)»
The Shed (Subtle) by Rainbow on Grooveshark
Poet'anarquista

O GALPÃO (SUBTIL) 

Sou como um trem de carga
Sentindo nenhuma dor
Eu nunca volto para trás numa pista
Melhor passo para o lado

Como uma espingarda
Eu sou realmente alguém
Você vai sentir a minha onda de calor
Não se vai salvar ninguém perto de mim

Eu sou de aço
Então venha e tente dobrar-me se puder, hah
Eu não sinto
Antes que você perceba acabou
Saia do meu caminho
Estou na rua caminhando, caminhando na rua.
Perseguição na noite eu estou andando na rua

Na reputação
Você é melhor correr rápido
Porque eu não tenho tempo e eu vou subir
Tudo sobre você

Você precisa de uma mão forte
Para ser um homem médio
Você tem que pensar rápido
Vou durar mais tempo do que você poderia saber

Eu sou de aço
Então você não vai tentar me dobrar, se puder
Eu não sinto
Antes que você perceba acabou
Fora do meu caminho
Eu estou andando na rua

Ei, eu sou um gato selvagem
Não preciso provar isso
Eu estou sempre deambulando
Procurando a minha presa

Poderia ser a sua noite
Para sentir a mordida de cão
E ouvir o corte, um caos
Soando dentro de você

Eu sou de aço
Então venha e tente quebrar-me se puder 
De jeito nenhum, como uma roda
Rolando mais sobre você
Saia do meu caminho
Estou na rua andando, na rua andando
Não falando, andando na rua
Perseguição na noite, andando pela rua
Falando não, eu estou na rua andando, sim
Na rua andando, na rua andando
Perseguição na noite, andando pela rua

Rainbow

OUTROS CONTOS

«Se», conto poético por Rudyard Kipling.

«Se»
Conto poético de Rudyard Kipling

374- «SE»

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses, no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta à vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

Rudyard Kipling

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

CARTOON versus DÉCIMA

O Providente
HenriCartoon

«O PROVIDENTE»

- Eu não disse, Zé?... o poente
Sem nuvens, céu descoberto…
- Quero lá saber do céu aberto!...
Está um frio de rachar o dente!!
- Resolvo a questão facilmente,
Pensei nisso e tenho solução…
-Ah, sim? Venha de lá então
 Uma boa notícia pra aquecer…
-Hibernas até o frio desaparecer,
E acordas quando for Verão!!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

PATTI SMITH - «Wicked Messenger»
Wicked Messenger by Patti Smith on Grooveshark
Poet'anarquista

MENSAGEIRO PERVERSO

Houve um mensageiro perverso
De helicóptero ele veio
Com uma mente que multiplicou um pequeno problema
Quando questionado o que tinha enviado para ele
Ele respondeu com o polegar
Por a língua não poder falar, mas apenas embelezar

Ele ficou atrás da sala de montagem
Foi lá que ele fez a sua cama
Muitas vezes, ele pode ser visto de regresso
Até que um dia ele simplesmente apareceu
Com uma nota na mão que dizia
«As solas dos meus pés, eu juro que elas estão queimando»

Ah, as folhas começaram caindo
E os mares começaram a sua parte
E as pessoas que o confrontam foram muitas
E foi-lhe dito, mas essas poucas palavras
Que abriram o seu coração
«Se vós não podeis trazer boas notícias, então não trazeis nenhuma»

Patti Smith

OUTROS CONTOS

«O Rapaz não Gostava das Mãos», por Alves Redol.

«O Rapaz não Gostava das Mãos»
Sem Título/ Peter Scott

373- «O RAPAZ NÃO GOSTAVA DAS MÃOS»

Talhado em angústia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu uma garrafa cheia de vinho e regressou à porta, levando o olhar fosco para além das casas, como se tivesse deixado atrás de si qualquer coisa fundamental ou viesse acossado por um bicho feroz. Parecia temeroso ou atormentado. Agarrava-se nas mãos a dor que não cabia dentro de si.

Altarrão e enxuto, vergava um pouco pelos rins, onde a camisa fraldiqueira e suja lhe saltava das calças derreadas. Tinha cara de menino assustado.

– Ah vida! – disse para a rua quase num grito.

Devia julgar-se sozinho com a vida para lhe atirar aquela acusação irada.
Quando reparou que também nós andávamos na mesma liça, quis perceber para quem falava, olhou à volta e atirou para o monte a sua pergunta:

Para que quer um homem a vida?...

Depois encolheu os ombros com resignação e desdém, indo sentar-se à ponta do banco encostado à parede. Pegou na garrafa, mirou-a à luz que vinha da porta e voltou a pousá-la no marmorite do balcão.

Abanava as mãos longas. Pensava que se as não tivesse não estaria ali tão longe. Pudera vir ao mundo lázaro das duas e andaria agora pela sua terra, batendo feiras na ganhuça de mendigo.
Era por isso que remirava as mãos com desprezo.

Atirou com o chapéu salgadiço de suor para a nuca, arrancou o lenço do pescoço e limpou a testa. Fez aquilo para não ficar quieto.

Quando pegou de novo na garrafa teve uma cortesia:

– São servidos?...

Uma escala de vozes respondeu-lhe obrigado!

Então o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e começou a beber. Todos voltámos a cabeça para vê-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que reparavam nele, coisa que não lhe acontecia há muito tempo. Cheio de brio, mamou a garrafa até ao fim. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa ao taberneiro e mandou-a encher.

– Já agora preparo a cama... Dorme-se melhor em cima de vinho do que numa esteira...

Largou o chasco e não sorriu. A verdade é que também não lhe achámos graça.

– Ontem o gajo do automóvel pôs-me umas suíças, o filho da mãe. Só hoje vi. Cheguei à noite a Bucelas com uns camaradas... Viemos todos prà vindima do patrão Soisa, o Tóino de Soisa. E o fi lho da mãe do chófer andou c’a gente às voltas e vai ao fim pede cinquenta malréis. Por uma légua cinquenta malréis. Se calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, não há coisa mais feia nem coisa mais certa...

Num repente calou-se assustado. Fez agulha à conversa:

– A gente bebe vinho, mas não bebe juízo... O filho da mãe do chófer há-de gastar o dinheiro que roubou à nossa desgraça com remédios de botica... Não lhe quero outro mal... O meu mal é outro...

Meteu a garrafa à boca sem a gala de se limpar. Levou-a de um trago até meio.

– Andar quase dois dias de camineta, a butes e de comboio para arranjar serviço... E viva! Na minha terra um homem quer matar o corpo e não encontra.

Não percebo porquê, encarou comigo. Vi que os olhos baços de tristeza se iluminavam de raiva.

– Terra pobre há-de dizer o senhor... Qual nada, qual quê! Há lá lavradores com terras que nem condados. Metem-lhe dentro três ou quatro feiras-atadeiras e aquilo é um bafo. A gente, os homens, acarretam lenha como as mulheres. Vão jornas a dezoito malréis. E é para quem quer... Quem não quer é madraço. Pra quem não quer há lazeira ou cadeia...

Voltou a sentar-se.

– Trabalho de mulheres prá gente – repetiu duas vezes com escárnio. – Pois que fiquem lá as mulheres; talvez elas um dia sejam tantas que acabem por capá-los.

Se a minha mão tivesse capado o meu pai não tinha eu vindo ao mundo...

Não gostou da ideia e pô-la mais ao jeito:

– Mais valia que a minha mãe me tivesse desfeito a cabeça numa parede quando me viu nascer...

Na madorra do pranto seco, suspirou: – Ah vida!...

– Vossemecês não gostam da gente... A gente vem de tão longe tirar o trabalho aos que cá moram. Está certo!...

O vinho começava a trocar-lhe as voltas. Enrolavam-se-lhe as palavras e as ideias.

– Está certo, não! Porque não há coisa mais desgraçada do que andar longe da nossa terra a padecer... Os padecimentos na nossa terra doem menos; saram mais depressa. Na minha terra não havia nenhum chófer que me levasse cinquenta malréis por meia légua. É o mesmo que roubar um cego...

Voltou a abanar as mãos.

– Vossemecê gosta das suas mãos?!... Diga lá, homem!

– As mãos nunca me fizeram mal...

– E bem?!

– Faziam-me falta...

– Pois a mim, não. Se não tivesse mãos, nunca abalava da minha terra.
Deixava-me morrer de fome, mas não abalava. Nunca abalava da minha terra...
Pedia esmola. Os lavradores sempre me davam alguma coisa. Não me mandavam apanhar lenha... Vossemecê já viu um homem a apanhar lenha?... É pior que ser mulher magana em terra de soldados.

E cuspiu no chão da taberna com raiva de provocar um terramoto.

Alves Redol

domingo, 28 de dezembro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Oferenda», por Moshe Hagiz.

«A Oferenda»
A Cidade de Safed, xilogravura de Harry Fenn

372- «A OFERENDA»

Nos idos de 1500, um pobre e ingénuo judeu marrano português chamado Josué emigrou com a mulher para a cidade santa de Safed, na Galileia. Fugido da ameaça das fogueiras da inquisição portuguesa, Josué estava radiante por finalmente poder praticar livremente a religião dos seus antepassados.

Já instalado na Terra Santa, anos mais tarde, ouviu o rabino falar na sinagoga sobre os lechem hapanim, os “pães de rosto”, que eram oferecidos na época do Templo Sagrado todas as sextas-feiras, antes do início do Shabbat. Depois de explicar as várias leis que em tempos antigos governaram estas oferendas, e de expor os seus significados místicos, o rabino suspirou profundamente e lamentou que, por causa dos nossos pecados, já não se podia alegrar Deus com estes pães.

As palavras sentidas do rabino sacudiram a alma do ingénuo marrano português. Quando chegou a casa, Josué contou tudo à mulher, Clara, e pediu-lhe que cozesse duas challot2 – o pão especialmente preparado para o shabbat – na sexta-feira seguinte. Deu-lhe todos os detalhes que se lembrava das palavras do rabino sobre o “pão de rosto”: a farinha, contou ele, devia ser peneirada 13 vezes, amassada ainda em estado de pureza e a massa devia ficar bem cozida no forno. “Deus deve estar cheio de fome, imagina, depois de tantos séculos sem poder comer estes pães! Vamos passar a levar-lhe challot todas as sextas-feiras.”, disse Josué cheio de alegria.

Clara cumpriu a vontade do marido e logo pela manhã da sexta-feira seguinte, quando Josué acordou, dois belos pães arrefeciam já sobre um pano imaculado na mesa da cozinha.

Faltando ainda muitas horas para o início do shabbat, o marrano português correu para a sinagoga, que estava deserta, e abrindo a Santa Arca disse com todo o fervor: “Oh! Senhor dos Céus, da Terra e de todos os seres, tem piedade deste teu filho e recebe esta pobre oferenda! Tomai estes pães e que eles sejam bem recebidos por Ti, como foram as oferendas dos nossos antepassados.”

Com as mãos trémulas, Josué depositou os pães na Santa Arca e, olhando em volta para ter a certeza que ninguém o vira, regressou rapidamente a casa.

Já Josué ia longe quando o shammash (o funcionário da sinagoga) chegou para preparar o shabbat. Ao abrir a Santa Arca para conferir os rolos da Torá, deparou com os dois belos e deliciosos pães e logo imaginou que só podiam ser para si. Algum judeu generoso os deixara em segredo, para não o envergonhar revelando a todos a sua pobreza, pensou ele.

Ao fim dessa mesma tarde, depois dos serviços religiosos, Josué dirigiu-se impacientemente à Arca Sagrada para ver se os pães ainda lá estavam. Quando viu que tinham desaparecido a sua alegria foi imensa. “Deus não desdenhou a nossa singela oferenda”, disse ele, radiante, à mulher.

E assim prosseguiu durante longos anos: sexta-feira de manhã Josué levava os dois pães feitos por Clara à sinagoga; e à tarde o shammash levava-os para casa profundamente agradecido ao seu secreto benfeitor. Ambos se deliciavam e agradeciam a Deus pelo milagre.

Tudo corria bem até que um dia o judeu português se preparava para cumprir o mesmo ritual de sempre quando os seus gestos foram observados pelo rabino, que nessa sexta-feira fora mais cedo para a sinagoga e, a um canto, preparava silenciosamente o sermão do dia seguinte.

Intrigado, o rabino ouviu a prece de Josué oferecendo os dois pães a Deus. Primeiro ficou em silêncio, mas assim que compreendeu o que se passava, o rabino ficou irado. Finalmente, não se conseguindo conter por mais tempo, dirigiu-se a Josué: “Seu idiota! Que fazes tu? Por acaso pensas que Deus come e bebe como tu? É um pecado terrível imaginar que Deus tem qualidades físicas como os homens. Pensas mesmo que é Deus quem recebe os teus miseráveis pães? É óbvio que é o shammash que os come!”

O rabino gritava ainda, vermelho de raiva, quando o shammash entrou na sinagoga para cumprir as suas tarefas habituais. O rabino confrontou-o imediatamente: “Vá, diz lá a este pobre idiota quem é que todas as semanas tira os dois pães que ele deixa na Arca?!”

O shammash admitiu logo ser ele quem levava os pães, sem compreender porque razão o rabino estava tão irritado.

Com os olhos encharcados em lágrimas, o marrano português contou então ao rabino como o seu sermão o inspirara a trazer os pães para a sinagoga. Acreditava que fazia uma boa acção, mas agora o rabino dizia-lhe que cometera um grande pecado. Desconsolado e sem saber o que dizer à mulher, Josué foi para casa.

Pouco tempo depois, entrou na sinagoga um mensageiro de Ari Ha’Kadosh que se dirigiu ao rabino. Em nome do seu mestre, o mensageiro disse ao rabino que fosse para casa, se despedisse da família e se preparasse, porque à hora destinada para o seu sermão de shabbat, na manhã seguinte, a sua alma teria já partido para o descanso eterno. “Assim anunciaram os Céus”, disse o mensageiro.

O rabino não queria acreditar na má notícia que ouvira. Sem perder tempo, foi ter directamente com o Ari Ha’Kadosh tentando saber que pecado fizera ele para merecer tal destino. O Ari confirmou a mensagem, acrescentando da forma mais gentil possível: “Ouvi que foi porque acabaste com um gesto que deleitava o Criador. Desde a destruição do Templo Sagrado que Deus não tinha uma alegria tão grande quanto aquela que lhe dava o gesto do marrano português, oferecendo os seus modestos pães do fundo do seu coração. Ao destruir a sua inocência, selaste o teu destino.”

E assim foi. Inconformado, o rabino dirigiu-se para casa e despediu-se da família. No dia seguinte, a sua alma partiu antes da hora marcada para a prédica de shabbat, tal como anunciara o Ari.

Moshe Hagiz

MÚSICAS DO MUNDO

E  a música de hoje é...
(25 de Dezembro de 2014, morre a cantora norte-americana, rainha das blues, Alberta Adams)

ALBERTA ADAMS - «Detroit»

sábado, 27 de dezembro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Barata», por Dino Buzzati.

«A Barata»
Conto de Dino Buzzati

371- «A BARATA

Tendo voltado tarde para casa, esmaguei uma barata que, no corredor, me escapava entre os pés (ficou lá, preta, no ladrilho) depois entrei no quarto. Ela dormia. Deitei-me ao seu lado, apaguei a luz, da janela aberta via um pedaço de parede e o céu. Fazia calor, não conseguia dormir, velhas histórias renasciam dentro de mim, dúvidas também, uma genérica desconfiança no amanhã. Ela soltou um pequeno lamento. «Que houve?», perguntei. Ela abriu um olho, grande, sem me ver e murmurou: «Tenho medo.» «Medo de quê?», perguntei. «Tenho medo de morrer.» «Medo de morrer? Por quê?» Respondeu: «Tive um sonho...» Aproximou-se um pouco. «Mas que é que você sonhou?» «Sonhei que estava no campo, estava sentada na margem de um rio e ouvi gritos ao longe... E eu devia morrer.» «Na beira de um rio?» «Sim.», respondeu «Ouvia as rãs... faziam crá, crá.» «E que horas eram?» «Era noite e ouvi gritar.» «Bem, durma, agora são quase duas horas.» «Duas horas?», mas não conseguia compreender, já tornara a pegar no sono.

Apaguei a luz e ouvi alguém remexendo no pátio. Depois, subiu a voz de um cão, aguda e longa; parecia lamentar-se. Subiu, passando diante da janela, perdeu-se na noite quente. Depois abriu-se uma persiana (ou se fechou?). Longe, muito longe, mas talvez eu me enganasse, uma criança se pôs a chorar. Depois, novamente o ulular do cão, longo como antes. Eu não conseguia dormir.

Vozes de homens vieram de alguma outra janela. Eram baixas, como murmuradas entre o sono. De uma sacada abaixo, ouvi um cip, cip, zitevitt, e algumas batidas de asas. «Flório!», ouviu-se chamar de repente, devia ser duas ou três casas mais adiante. «Flório!», parecia uma mulher, mulher angustiada, que tivesse perdido o filho.

Mas por que o canarinho do andar de baixo acordara? Que havia? Com um rangido lamentoso, como se fosse empurrada devagarinho por alguém que não queria fazer-se ouvir, uma porta se abriu em algum lugar da casa. Quanta gente acordada a essa hora, pensei. Estranho, a essa hora.

«Tenho medo, tenho medo», queixou-se ela procurando-me com o braço. «Oh, Maria», perguntei, «Que tem você?» Respondeu com voz ténue: «Tenho medo de morrer.» «Você sonhou de novo?» Fez que sim, devagarinho, com a cabeça. «De novo aqueles gritos?» Fez sinal que sim. «E você ia morrer?» Sim, sim, indicava, procurando olhar-me, com as pálpebras grudadas pelo sono.

Há alguma coisa, pensei: ela sonha, o cão uiva, o canarinho acordou, as pessoas se levantam e falam, ela sonha com a morte, como se todos tivessem sentido uma coisa, uma presença. Oh, o sono não vinha e as estrelas passavam. Ouvi distintamente no pátio o ruído de um fósforo aceso. Por que alguém se punha a fumar às três horas da manhã? Então senti sede, levantei-me e saí do quarto para beber água. A triste lâmpada do corredor estava acesa, percebi vagamente a mancha preta no ladrilho e parei, assustado. Olhei: a mancha preta se movia. Ou melhor, movia-se um pedacinho (ela sonha que vai morrer, o cão uiva, o canarinho acorda, pessoas se levantaram, uma mãe chama o filho, as portas rangem, alguém fuma, e há talvez um choro de criança).

Vi, no chão, o bichinho preto que movia uma patinha. Era a do meio, à direita. O resto estava imóvel, uma mancha de tinta que caíra da morte. Mas a perninha remava fracamente como se quisesse subir de novo alguma coisa, o rio das trevas, talvez. Teria ainda esperança?

Durante duas horas e meia, dentro da noite — senti um calafrio —, o imundo insecto grudado no ladrilho pelas suas próprias mucilagens viscerais, durante duas horas e meia continuara a morrer e ainda não acabara. Maravilhosamente continuava a morrer, transmitindo, com a última patinha, a sua mensagem. Mas quem a podia colher às três da manhã, na escuridão do corredor de uma pensão desconhecida? Duas horas e meia, pensei, continuamente para cima e para baixo, a última porção de vida na perninha sobrevivente, para invocar justiça. O pranto de uma criança — lera um dia — basta para envenenar o mundo. Em seu coração, Deus omnipotente quisera que certas coisas não acontecessem, mas não pôde impedi-lo porque por ele mesmo foi decidido. Mas uma sombra jaz ainda sobre nós. Esmaguei o inseto com o chinelo e, esfregando no chão, esmigalhei-o num longo rasto cinza.

Então, finalmente, o cão calou-se, ela, no sono, se acalmou e parecia quase sorrir, as vozes se apagaram, calou a mãe, não se percebeu mais nenhum sintoma de inquietude do canarinho, a noite recomeçava a passar sobre a casa cansada, a morte fora inchar sua inquietude em outras partes do mundo.

Dino Buzzati

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FLAT LAND
«The World That Surrounds»

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

CARTOON versus QUADRAS

O Mês Espectacular
HenriCartoon

«O MÊS ESPECTACULAR»

Foi um mês espectacular
Este que me aconteceu...
Regressei de Paris a voar,
E vejam só o que sucedeu:

Fui detido no aeroporto
E acusado de corrupção...
À espera de ser solto,
Acabei a noite na prisão!

Depois levaram-me ao juiz
De instrução criminal…
Começou a crescer o nariz,
Fui parar à prisional.

 Évora foi o meu destino
Neste regresso ao país,
Mas o sonho de menino
É uma mansão em Paris!

Termino… estou inocente
Até prova em contrário…
Na preventiva é indecente,
Sou tratado como um otário!

Pra todos Bom Ano Novo
E muitas felicitações,
Agradeço deveras ao povo
Ter contribuído com milhões!!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Bolo Rei», por Maria Rosa Colaço.

«O Bolo Rei»
Conto de Maria Rosa Colaço

370- «O BOLO REI»

Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de atravessar a pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que misturámos poemas com lágrimas.

De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista engomada, cheias de silêncios e reverências.

Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.

Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o brilho dos copos de cristal.

Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à distribuição nos pratinhos de sobremesa.

— Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!

E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado do paladar, se comeu a sobremesa.

A prenda calhou à criada.

— Que sorte! Mostre lá!

— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade. Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.

— E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?

— Come que está bom e fofinho!

Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em negativas.

— Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras: queres mais um bocadinho de bolo?

— Ao menos acaba esse!

— Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.

Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!

Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.

— Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?

— Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?

Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada, ralha:

— Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…

Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:

— É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.

E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia, quente ainda, do esconderijo em que estivera.

E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo, sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que a mãe o aconchegou junto de si.

Sem palavras, mãe.

Sem palavras.

Maria Rosa Colaço

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ELVIS PRESLEY
«Merry Christmas Baby»
Merry Christmas Baby by Elvis Presley on Grooveshark
Poet'anarquista

FELIZ NATAL, QUERIDA

Feliz, feliz Natal, querida

Claro que me tratou bem
Eu disse feliz Natal, querida
Claro que me tratou bem
Me deu um anel de diamante pelo Natal
Agora eu estou vivendo no Paraíso

Bem, estou me sentindo muito bem
Ponha uma boa música no meu rádio
Bem, estou me sentindo muito bem
Ponha uma boa música no meu rádio
Bem, eu quero beijar você, querida
Enquanto você está em pé debaixo do visco

Eu disse feliz, feliz
Feliz, feliz Natal, querida

Claro que você me tratou bem
Sim, você tratou, sim, você tratou
Sim, você tratou, sim, você tratou
Eu disse feliz, feliz Natal, querida
Claro que me tratou bem
Me deu um anel de diamante pelo Natal
Agora eu estou observando através do microscópio

Elvis Presley

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Batalha de Natal», por Jutta Modler.

«A Batalha de Natal»
Conto de Jutta Modler

369- «A BATALHA DE NATAL»

— Só mais seis dias — disse Neli.

Enquanto a filha tentava assobiar Noite Feliz, a mãe repetiu, pensativa, numa voz que não soava alegre:

— Ainda seis dias.

Após uma curta pausa, prosseguiu, suspirando:

— Se tudo já tivesse passado!

Com o assobio suspenso no ar, Neli olhou para a mãe com ar estupefacto:

— Não estás contente?

— Claro que sim, mas já estou pelos cabelos com esta agitação toda!

Como Neli não tinha aulas à tarde, foi patinar com uma amiga. Ao cair da noite, dirigiu-se ao supermercado onde a mãe trabalhava. Havia tanto movimento que o lugar mais parecia uma colmeia. A mãe estava sentada numa cadeira giratória, diante de uma das seis caixas registadoras. Os produtos chegavam-lhe num tapete rolante. Enquanto a mão direita marcava os números no teclado, a mão esquerda rodava as embalagens para que a máquina pudesse ler os códigos. Finda a operação, os produtos eram colocados, um a um, no carrinho de compras. Quando acabava de marcar tudo, a mão direita carregava na tecla do total e rasgava o talão, enquanto a esquerda afastava o carro cheio e puxava o próximo, vazio, para junto dela.

— Que bem fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu faria tudo devagar e, ainda por cima, metade saía mal.

— Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino. Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não encontrava a etiqueta com o preço e, muitas vezes, carregava nas teclas erradas. Como tinham de esperar, as pessoas resmungavam. Agora já quase consigo fazer isto automaticamente.

— Como um robô! — Neli riu-se.

E se tivesse um robô como mãe? Nunca teria dores de cabeça, nem à noite estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração e, por isso, Neli preferia a mãe tal como era, mesmo quando, em certas noites, quase nem conseguia falar de tão cansada!

Só mais quatro dias.

Só mais três.

As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um ruído sibilante, as portas automáticas abriam e fechavam, abriam e fechavam. A mãe sentia nas costas a corrente de ar e os cartões pendurados no tecto balançavam de um lado para o outro.

Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe, tinha escrito a vermelho: 
Promoção: Bombons, 250 gr, a preço especial.

Perto dele balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos, como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80€/kg.

Os altifalantes debitavam música de Natal:

Noite feliz…
Cabeça de anho
Noite feliz…
Descafeinado
Papel higiénico de três folhas
O Senhor…
Lenços com monograma
Mostarda
Nasceu em Belém…

A mãe suspirava e, com um movimento rápido, limpava o suor do lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam, apoiando-se ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem olhavam para a senhora da caixa, pensando apenas no regresso a casa com os sacos pesados e o eléctrico cheio.

Ufa!

Só mais três dias, e acabaria tudo.

— Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse a mãe, à noite, virando-se para Neli. — Patê em folhas de alface, porco assado, batatas fritas, feijão e, para sobremesa, creme de chocolate de lata com pêras.

No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um desconto de 15%, os produtos que tinham sobrado. A mãe de Neli achava que valia a pena e, por isso, tinha guardado as compras maiores para essa altura: uma pasta escolar para Neli, uma boneca, lápis de cor, um anoraque para o pai, e a comida para a ceia de Natal.

Na sala do pessoal, houve um lanche para todos os empregados.

— A batalha de Natal foi mais uma vez vencida — alegrou-se o chefe do pessoal, que proferiu mais umas palavras elogiosas.

Depois foram servidos pãezinhos com fiambre e um copo de vinho a cada um.

Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava na paragem do autocarro. “As minhas prendas! Todas aquelas coisas boas para a ceia!”, pensou assustada.

Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não voltava a abrir. Chegou a casa de mãos vazias.

Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai acendeu as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou das duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o muito bonito e o pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi mais curto do que o planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o assado e havia batatas em casa, mas não houve entrada nem sobremesa. Trincaram nozes e comeram maçãs.

— Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me caem bem.

Também não havia muito que desembrulhar.
Por isso, sobrou tempo. Muito tempo.

Neli foi buscar o jogo “Memory” que recebera no Natal anterior. Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que alguém tivesse tempo para jogar com ela.
Agora, os pais tinham tempo.


O pai nunca tinha jogado “Memory”. Ao fim de algum tempo, Neli já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que geralmente queria ganhar sempre, procurava constantemente no sítio errado.

Tentava alguns truques, pondo, sem ninguém dar conta, migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou pousava as mãos na mesa, de forma a que o polegar indicasse a direcção em que estava uma determinada carta. Mas Neli descobriu-lhe a jogada. Jogaram mais duas ou três vezes e o pai não se zangou por perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do assalto.

À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela janela. A neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar.

— A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse a mãe, e Neli reparou que, afinal, a mãe estava contente por ser Natal.

Ao ir para a cama, Neli disse:

— Este foi um Natal muito bonito.

— A sério? — perguntou a mãe, admirada. — Mas não houve ceia nem prendas quase nenhumas.

— Mas houve muito tempo — respondeu Neli.

Jutta Modler

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(25 de Dezembro de 2008, morre a cantora de jazz norte-americana, Eartha Kitt)

EARTH KITT - «Santa Baby»
Poet'anarquista

PAI NATAL

Pai Natal, escorregue num sabre debaixo da árvore, para mim
Eu fui um bom menino terrível
Pai Natal, e desça pela chaminé hoje à noite
Pai Natal, um espaço de saída-fechado-conversível também, azul claro
Eu vou esperar por você querida
Pai Natal, e desça pela chaminé hoje à noite
Pense em toda a diversão que eu perdi
Pense em todos os caras que eu não beijei
No próximo ano eu poderia ser oh tão bom
Se você verificar fora da minha lista de Natal

Pai Natal, eu quero o iate 
E realmente isso não é muito
Eu fui um anjo todo o ano
Pai Natal, e desça pela chaminé hoje à noite
Há uma coisa que eu realmente preciso, a escritura
Para uma mina de platina
Pai Natal, e desça pela chaminé hoje à noite
Pai Natal, eu estou enchendo minha meia com um duplex
E cheques, assine seu 'X' na linha
Pai Natal, e desça pela chaminé hoje à noite
Venha aparar minha árvore de Natal
Com algumas decorações compradas em Tiffany
Eu realmente acredito em você
Vamos ver se você acredita em mim

Pai Natal, esqueci de mencionar uma coisa pequena, um anel
Eu não quero dizer um telefone
Pai Natal, e desça pela chaminé hoje à noite
desça pela chaminé hoje à noite
desça pela chaminé hoje à noite

Eartha Kitt

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

DÉCIMA NATALÍCIA

Boas Festas Num Repente...
Poesia Popular Decimal

BOAS FESTAS NUM REPENTE...

Era uma vez uma família
De seu nome Galhardas...
A quem desejo boas entradas
E um Natal sem quezília!
Toda a alma se reconcilia
Nesta época de celebração,
Juntos à mesa comem o pão
E bebem do vinho sagrado…
Depois canta-se o fado
Em qualquer ocasião!!

POETA

Feliz Natal e Boas Festas!

CARTOON versus DÉCIMA

«O Grande Culpado»
HenriCartoon

«O GRANDE CULPADO»

- Mas achas mesmo culpado,
Ou não passa de brincadeira?
- Se a culpa morre solteira
Ainda fico desempregado…
- Este corrupto é um safado,
Mas saiu-lhe o tiro pla culatra!
- Muita gente o idolatra
E o quer fora da prisional…
- Tu acreditas no Pai Natal?...
Vai consultar um psiquiatra!!

POETA 

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

PUCCINI
«Vals De Musetta/ La Bohème»
Vals De Musetta, De 'la Bohème' by Giacomo Puccini on Grooveshark
Poet'anarquista

Feliz Natal a todos os Visitantes e Amigos do Poet'anarquista...

Bem Hajam!

OUTROS CONTOS

«A Mais Alta Estrela», por Nuno Higino.

«A Mais Alta Estrela»
Conto de Nuno Higino

368- «A MAIS ALTA ESTRELA»

A rua tinha luzes de muitas cores que, encavalitadas nos postes, faziam desenhos de Natal. E dançavam ao som duma música cheia de sonoridades leves como algodão. De vez em quando passava um automóvel apressado. Apesar disto, ali da montra onde se encontravam, tudo era frio e distante. Eram duas bonecas que ninguém quis comprar.

— Este é o nosso primeiro Natal…

— E, decerto, o último. Se ninguém nos comprou, vamos ser retiradas da montra e arrumadas, ou entregues à caridade, ou destruídas.

— Assim será, com certeza. A nossa vida depende das leis do mercado.

E foram conversando para passar o tempo, ora filosofando sobre a sua efémera existência, a sua matéria breve, ora imaginando como seria o Natal das pessoas, que só conheciam de ver passar na rua, ou da loja, quando entravam para comprar bonecas.

— Esta é belíssima, elegante, tem um belo vestido e uma cintura fina.

— Esta tem uma expressão de felicidade, um olhar doce.

— Aquela, de cabelos louros, tem no rosto o sol abrasador do Verão.

Mesmo para uma boneca, era triste ficar ali na noite de Natal a olhar a solidão da rua. Sobretudo quando imaginavam a alegria das outras bonecas que tinham sido vendidas: a emoção de sair de dentro dos embrulhos, de sentir todas as atenções, de receber um nome, de entrar na família fantástica das crianças.

Todas as pessoas deviam ter uma casa, porque ninguém passava na rua. Todos os meninos deviam ter brinquedos na noite de Natal, porque os brinquedos mais bonitos tinham sido vendidos. Em todo o mundo devia haver alegria e surpresa e magia naquela noite, porque era dessa forma que a imaginavam.

Dentro das casas, o ar estaria povoado de seres fantásticos, que se moviam como se não tivessem peso. Esvoaçavam como se fossem pequenos pássaros transparentes. E isto criava uma grande excitação entre as crianças. Elas próprias se sentiam tão leves que os seus movimentos eram como os movimentos dos astronautas: dançavam, elevavam-se, sorriam, tocavam-se, cantavam melodias afinadíssimas e finas como um fio de cristal. As bonecas entravam também nesta dança fantástica como se fossem pessoas de verdade. A árvore de Natal transformara-se numa enorme tília de grandes ramos. Havia baloiços pendurados nos ramos. Havia pequeninas casas suspensas nos ramos. As estrelas desciam e poisavam nos ramos. E todos aqueles seres – crianças, anjos, pássaros, estrelas e bonecas – percorriam os ramos, como se fossem caminhos, entravam nas casinhas, dançavam nos baloiços, agarravam-se à cauda das estrelas. Entre os ramos mais distantes construíam passadiços e imaginavam rios por onde às vezes desciam: bebericavam, tomavam um banho, atiravam salpicos de água uns aos outros.

Estavam assim imaginando, quando se aproximou da montra uma figura muitíssimo estranha: tinha umas roupas sujas e gastas, os cabelos sujos e desalinhados, a barba suja e por fazer e nos seus olhos havia fome, desolação e desprezo. Falava sozinho palavras imperceptíveis.

— Esta figura não deve ser de cá…

— Talvez tenha descido de outro planeta, um planeta onde não há Natal, nem casas, nem anjos, nem estrelas, nem amigos…

A rua continuava deserta e o homem continuava ali fitando a montra e falando desordenadamente. De nenhum lado surgia uma sombra, uma voz, um movimento, um pássaro branco, um anjo de tule, um caule de luz. Até a música de algodão pendurada nos postes se tinha já calado.

— Como deve ser triste a vida na terra, na cidade ou no planeta donde veio…

Nada no seu rosto fazia lembrar a alegria: nenhuma expressão, nenhum traço, nenhuma palavra.

De vez em quando estendia o braço, apontando não se sabia o quê, apontando por apontar; e o vento gelado da noite alinhava os seus cabelos na direcção do braço. E nada lá ao longe fazia lembrar a liberdade. Outras vezes ficava estático e imóvel, fitando o infinito. Parecia uma estátua feita do mais cruel abandono; parecia um tronco velho de uma árvore; parecia a coluna de um palácio abandonado. E nada na sua pose fazia lembrar a paz. Outras vezes ajoelhava-se fitando o chão, como se o chão fosse um enigma por decifrar, como se na pedra do chão estivesse gravado um vestígio de Deus; como se Deus se tivesse esquecido, por acaso, de uma marca, um indício, um grão de poeira, um cabelo que fosse.

— Há tempos ouvi falar aqui na loja de um país ou planeta onde as pessoas são desprezadas, onde lhes negam o pão e as obrigam a matar-se umas às outras. Os que as governam são maus e obrigam-nas a viver na rua como animais vadios.

O homem não tirava os olhos da montra como se estivesse a falar com as bonecas, mas utilizando uma linguagem que elas não entendiam. Poisou no chão umas sacas que trazia consigo e começou a esbracejar. Mas nenhum dos seus gestos fazia lembrar a justiça. Ora estava de pé, ora de cócoras, ora se sentava no passeio. Mas sempre desenhando a mesma veemência, a mesma impaciência.

— Talvez queira dizer-nos alguma coisa. Talvez pense que somos pessoas. Talvez procure em nós uma resposta para as suas perguntas.

— Talvez tenha pena de nós e ficasse ali a distrair a nossa solidão.

Passado muito tempo, adormeceu encostado à montra. Um cão que passava remexeu-lhe nas sacas e fugiu abocando alguma coisa que não puderam ver o que era. Depois veio outro cão e deitou-se ao calor dos seus pés. Assim ficaram ali pela noite dentro. Era quase de madrugada quando apareceu, não se sabe de onde, uma mulher igualmente desgrenhada, cambaleante e com os olhos cheios de amargura e abandono. Trazia nos braços algo que poderia ser uma criança. Deitou-se também, puxou um dos sacos para a cabeça a fazer de travesseiro e adormeceu.

— São estranhas estas figuras… Como é que no país ou no planeta lá onde moram não há Natal?

— Como devem ser infelizes as pessoas… Um planeta sem Natal devia ser extinto, devia explodir nos ares, ficar desfeito em poeira fina e disperso pela imensidão dos céus.

— Provavelmente foram expulsas e tiveram de caminhar dias e noites até encontrar este recanto.

— Tiveram sorte de não serem assaltadas pelo caminho, nem de morrerem de frio, de sede ou de fome.

— Talvez tenham uma resistência e uma energia maior do que a das pessoas que conhecemos.

— Talvez o seu corpo não sinta frio nem calor. Talvez não precisem de alimento, de carinho, de amizade.

— Pelo menos numa coisa são diferentes de nós, bonecas: precisam de dormir…

— Devem ser alimentados e encorajados durante o sono por um anjo ou outro ser invisível.
Por um tempo deixaram-se destas conjecturas e voltaram a pensar como seria o Natal dentro das casas. Agora todos estariam já a dormir, sonhando com os anjos, os pássaros transparentes, as estrelas; sonhando com um tal Jesus, que não sabiam muito bem quem era, mas devia ser tão maravilhoso que até lhe chamavam Salvador.

Estavam assim imaginando, quando surgiu um carro da polícia. Parou em frente à montra. De dentro saiu um homem com uma farda e deu um pontapé no cão, que ganiu e fugiu a coxear. Depois fez o mesmo ao homem e à mulher e obrigou-os a entrar no carro, o que fizeram ensonados e sem oferecer resistência.

— Sempre não devem ser de cá…

— Talvez as autoridades os tenham levado para analisar e estudar como é a vida no país ou planeta de onde vieram.

— Ah! Já sei porque vieram buscá-los. Não te lembras de ouvir falar do Presépio? Era um homem, uma mulher, uma criança e um animal. Decerto andavam à procura de um presépio raro, e encontraram este e levaram-no para um museu.

— O que é um museu?

— É uma casa muito grande cheia de coisas antigas, raras e valiosas onde também há pessoas com olhos, boca, ouvidos e mãos; mas não vêem, não falam, não ouvem, não cumprimentam ninguém. Chamam-se estátuas.

— E dentro dos museus também há Natal?…

Nuno Higino