Fernando Namora conta a aventura dos «Dois Ovos ao Fim da Tarde», que o pintor Luis Dourdil comprava diariamente para a execução do a fresco.
Poet'anarquista
«Dois Ovos ao Fim da Tarde»
Conto de Fernando Namora
346- «DOIS OVOS AO FIM DA TARDE»
Quando o homem saiu de casa, pensou apenas em que lhe
saberia bem ir a pé até ao fundo da Alameda. Não eram muitas as vezes em que
podia voltar as costas ao autocarro e dar-se a esse apetecido exercício. Sem o
aguilhão do relógio. Sem moer-se com atrasos. Tinha um emprego que o enjaulava
das tantas da manhã (que cedo acordavam as manhãs!) às tantas da tarde (que
ronceiras eram as tardes!),com as nádegas pregadas a um banco alto, o cavalete
na frente, a mão contrafeita a sujar papéis de olhos fechados, a cidade
espalmada nos vidros da janela como um rosto triste (mas a tristura era dele, que
a via tão perto e tão distante), e quando, enfim, se abriam as portas da prisão
pouco mais tempo lhe restava do que, num rufo, tomava a bica no café mais
próximo. Depois vinha o jornal lido no autocarro, o jantar e o serão que não
chegava a nada para o muito que lhe daria gosto fazer. A mulher nem se atrevia
a propor um passeio. Sabia respeitar aquela necessidade de iludir o sonho e
tricotava enquanto ele, numa nuvem de cigarros, refundia, noite após noite, o
que começara na véspera. Havia os domingos, é certo, mas os domingos eram a
ressaca da semana: a indolência merecida ou desenganada, o pequeno almoço na
cama, a música do rádio, a matiné no cinema do bairro e, sobretudo, o fastio
das ruas em que a vida se adiava. A verdade é que, quando chegava o Verão, sentia
as juntas perras, a moleza pegada ao corpo e, debalde, fugia ao langoroso
convite dos cadeirões das esplanadas. Valia-lhe ser um peso pluma. Mas agora
que, por um acaso da sorte e valendo-se de um duvidoso atestado de doença,
interrompera o emprego para aceitar aquele trabalho, não desperdiçaria o ensejo
de um pouco de marcha diária, já que da sua casa à Alameda nem dois quilómetros
distavam. Marchar, numa rotina de sedentarismo (tanto os da alma como os dos
músculos) também sabia a libertação. O homem, pois, saiu de casa a foi ao
atravessar a rua que se lembrou dos ovos. Sem os ovos, nada feito. Estudara as
coisas com rigorosa minúcia. Desavezado a certos lugares, e como nunca
acompanhara a mulher nas compras, voltou atrás e gritou para cima, pelos
roufenhos do intercomunicador:
- Maria, onde poderei encontrar ovos?
A mulher, com risos na voz, elucidou-o:
- Fica-te em caminho. Na Charcutaria «Pôr do Sol».
A charcutaria «Pôr do Sol». Essa, conhecia ele. Ali
a dois passos. Tomava lá café, nada mau, e só um herege podia ficar indiferente
à exuberância da apetitosa montra, desde chourições aos papos de anjo de
Amarante. Ovos, numa luxaria daquelas? A ideia intimidava-o. Entrou, porém
armando-se com o alibi de precisar de cigarros, para o caso de se sentir em
apuros. Viu-se, por momentos, aturdido com o labirinto de escaparates, mas logo
um senhor mavioso, que o observara de longe, destes para quem «o cliente
tem sempre razão», veio desembaraça-lo de hesitações.
-Tem a bondade. Vossa Excelência que deseja?
Adiou a resposta com um distraído ou ainda perturbado:
- Boa tarde.
- Boa tarde a Vossa Excelência. Deseja então...
- Ovos.
- Com certeza. Tem por onde escolher.
-Queria dos melhores.
O lojista, que parecia passado a ferro de cima a baixo, assentiu
numa reverência e, guiando o cliente até uma pilha de tabuleiros, apontou com a
mão esmerada:
- Aqui os tem Vossa Excelência.
O homem pegou num, dos ovos, rodou-o vagarosamente entre os
dedos, avaliou-lhe o peso e, quando ia a apreciá-lo contra a luz, o lojista
interrompeu-o, já numa ênfase um tudo- nada agastada:
- São de primeira qualidade.Com carimbo. Vêm directamente de
Albarraque, do produtor. Ovos saloios-e diluiu o olhar impaciente pelo que se
passava em redor.
O pormenor do carimbo é que pareceu impressionar o cliente. Pois,
lá estava o carimbo. Para quem não estivesse afeito aos códigos de mercancia, poderia
parecer outra coisa, mas eram mesmo letras, números-um carimbo. Ficava a saber
que por aí, se conheciam os ovos de confiança.
- Bem, já vejo que são bons. E suponho que frescos.
- Sem dúvida.
O lojista aguardou uma ordem, ou seja, que o freguês
mandasse embalar a quantidade desejada, e, de raspão, atentou em que ele nada
trazia consigo, nem um saquinho disfarçado, que servisse para transportar os
ovos. Mais que ia dizer-lhe para mandar a encomenda a casa.
- Quantas dúzias?
- Quero dois.
- Disse duas?
- Dois. Dois ovos.
- Vossa Excelência manda.
A imperturbabilidade do lojista era um modelo de controle
profissional das emoções. De calo no ofício. E também de natural fidalguia, perfeitamente
compatível com uma actividade que alguns tinham por servil. Um senhor, enfim. Chamou
a empregada para embrulhar os dois ovos e agradeceu como se tivesse tratado de
uma compra choruda.
O homem esteve a trabalhar toda a tarde...
No dia seguinte, a cena da compra simplificou-se.
O senhor de falas corteses viu-o do balcão, antecipou-se a
um marçano, talvez para que não houvesse perda de tempo e inquiriu:
- Hoje, Vossa Excelência deseja...
- Os ovos. Dois. Com carimbo.
Enquanto os escolhia no tabuleiro, o lojista repetiu:
- Dois. Com carimbo. Ei-los. Mais nada?
- Mais nada.
O outro franziu a testa ainda lisa. Só a testa. Mas, ao
convidar o freguês a acompanhá-lo na cariciosa mirada pelos artigos expostos, via-se
que lhe era difícil aceitar o vexame de uma compra que não justificava que
alguém pusesse os pés na mais ordinária das lojas.
- Temos um esplêndido queijo de Azeitão. Talvez Vossa Excelência...Mas se
prefere da Serra...
- Não quero queijo.
- Ou fiambre. Não encontra que se compare.
- Apenas os ovos.
- Vossa Excelência manda.
À despedida, foi com um tempero de discreta ironia que o
senhor afável perguntou;
- Vossa Excelência ficou satisfeito com os ovos de ontem?
- Eram perfeitos.
- Ainda bem. Nunca tivemos uma reclamação.
E o mesmo diálogo com a ocasional variante de meias palavras
de embuçada intenção, nos dias que se seguiram. Mas, à quarta vez, depois de o lojista
o seduzir em vão, com atuns, salpicões, alheiras de Mirandela, intrigado com a
história dos ovos... bastar-se com os ovos em três jantares sucessivos?(e o
almoço, com mil diabos?) e nem ao menos se consolar com um naco de presunto ou
uma talhada de queijo!...Por isso, o estranho cliente era uma carga de ossos.
- Boa tarde.
- Boas tardes a Vossa Excelência.
- Dois ovos como os de ontem.
- Ou como os de anteontem...
Sorriam ambos. A resvalar para uma intimidade constrangida.
E estavam naquilo à mesma hora. E, por ser à mesma hora, o lojista
já o esperava à porta.
Os dois ovinhos do costume, não é verdade?
- Dois.
- A que horas fecha a charcutaria?
- Às dez, caro senhor.
- Então passarei a vir a roda das nove.
O lojista passou a mão branda pelos cabelos grisalhos, que a
brilhantina escurecia e domesticava.
Encorajava-se a um reparo.
Vossa Excelência desculpará a impertinência: mas porque não
leva de cada vez uma dúzia de ovos, uma dúzia ou outra quantidade qualquer, evitando
o incómodo de...
- Prefiro assim.
Vossa Excelência manda.
Os gestos do lojista, porém, a custo dissimulavam o
nervosismo, para não dizer a irritação.
Aguardava o cliente à hora prevista...
- Vossa Excelência tem frigorifico?
- Tenho, mas porque me pergunta?
- É que se permite uma sugestão, poderia abastecer-se com uma
quantidade razoável de ovos, visto que, no frigorífico, conservam-se muitos
dias.
- Bem sei. Mas quero-os bem frescos. Dois de cada vez.
- Vossa Excelência é casado? Perdoe o atrevimento.
- Atrevimento? De modo nenhum! Sou casado, sou. Há uns bons
anos.
- E janta, portanto, em casa.
- Quase sempre.
- Ah.
E não ousou ir mais longe. Em cada dia ,que entre ambos se
insinuava uma convivência de ambiguidades, o lojista avançava em passo miúdo na
tentativa de decifrar o mistério...
- Pelo que deduzo, Vossa Excelência gosta muito de
ovos.
- Nem por isso.
Era demais. Aquilo excedia o que a curiosidade e a compostura
de um homem poderiam suporta. Sentia-se humilhado. Sentia-se humilhado desde o
primeiro dia, para que negá-lo? Embrulhou os ovos à má cara, despediu o freguês sem
a saudação habitual. Porém num repente, foi sobre ele antes que passasse a
porta, disse:
- Então os ovos são para alguém da familia...
- Não são para mim.
O lojista mais não pôde que abrir a boca...
- Na vez seguinte, o lojista escolheu com enfatuado desvelo
os dois ovos...
- Sabe Vossa Excelência que tenho prazer em vender ovos? É
que, para mim são um pitéu. Omelete com salsa...
- Pois eu nem com salsa nem sem ela.
- Ah.
No dia seguinte o lojista aguardava-o junto ao balcão
acompanhado de uma senhora um rapazola de uns catorze anos...,o grupo que parecia
posar para um retrato, fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva. Quanto
ao lojista entre o acusador e o triunfante: «Eu não vos dizia? É
este.» Aproximou-se de voz melada e irónica:
- Os dois ovinhos do costume, claro está.
- Aqui tem Vossa Excelência. Bom proveito.
No dia seguinte...
- Perdoe Vossa Excelência: gostaria de confessar uma
curiosidade.
- Estou a ouvi-lo
- Bom o caso é este: os ovos, os dois ovos diários. não são
para o senhor comer, não são para ninguém comer, pois foi o senhor a dizê-lo; então
para que servem?
- Muito simples: para pintar.
O lojista recuou, varado pela zombaria...,apontou o dedo
trémulo...
- Diz Vossa Excelência que são para pintar. Tem graça. Carradas
de graça. Para pintar de amarelo, bem entendido.
- De azul. Ou de violeta, vermelho, negro. -E após ter
sublinhado uma pausa, falando espaçadamente e com uma deslavada inocência: -Mas
às vezes também de amarelo, de facto.
Olhando à roda, não fosse alguém reparar no diálogo, o lojista retorquiu, sem
já moderar o sarcasmo:
De azul , de preto, de violeta. Pintando!
- Com ovos
- O senhor, o senhor!-Estava prestes a pôr de banda todo o
resguardo nas suas reacções. Estava preste a esquecer, pela primeira vez na
vida, que um cliente é um cliente. Mesmo sendo tonto ou lunático. Ou
provocador. -Mas pintar aonde?
- Numa parede. No fundo da Alameda. Naquelas obras ao lado do
Cinema.
- Ao lado do...No fundo da Alameda.
Há um tapume é nessas obras.
- Mas isso é um café.
Vai ser Grande. O maior de Lisboa.
- A pintar.
- Com ovos, sim. O senhor pode ir lá ver.
- E vou. Quando?
- Quando quiser. Agora mesmo.
O lojista ainda incrédulo disse e poderei ir depois de
fechar a charcutaria?
- Claro que pode agora já sabe o sitio.
- Então lá estarei.
O homem divertido, foi saboreando a conversa ao longo da
rua. Chegou à Alameda sem dar por isso. Começou a preparar a emulsão no
almofariz. Aquilo servido numa travessa passaria por maionese. De um lado .a
gema de ovo misturada com o óleo de linhaça; do outro o friso de latas com os
pigmentos. Como estes eram uma poeira seca, aderiam ao pincel molhado na
emulsão. Nada de colas. Estudara a técnica com todo o vagar. Lera alfarrábios, fizera
experiências. A gema de ovo fora até ao século XVI um dos veículos das tintas. Os
antigos não eram tolos. Para eles a arte começava na oficina.
Interessara-lhes
a gema de ovo, cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo. Pintura com séculos de confirmação, resistindo às maiores usuras. Tinha de resultar. Mas
quanto fizera sofrer o pobre lojista! Exagerara. Sem premeditação, é certo
empurrado pelas circunstâncias, pelos espantos, pelos tais laconismos. No
entanto, talvez o enigma tivesse agitado a monotonia daquele viver. Batiam à
porta, devia ser ele. Disse para o ajudante:
- Vai abrir que certamente é o senhor dos ovos.
- Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras...,sentiu-se
engolido por um túnel de surpresas: andaimes, o esgazeamento de luzes crua. Não
viu logo o seu cliente, porque este sumia-se no poleiro de cavaletes. Mas de lá
lhe chegou uma voz familiar:
- Trepe a essa mesa é mais fácil.
Levantou a cabeça para o alto, na direcção das lâmpadas que
tinham o feitio de olhos de rã. Uma vasta parede de cal e areia, por onde
progredia, uma labareda de cores, a incendiar os esboços de carvão, representando
pessoas com o ar extasiado de quem aguarda um cometa no céu. Ei-los, os
vermelhos, os azuis, os amarelos. Aceitou a mão que o ajudava. O cliente vestia
um fato de macaco e, na face encovada, ondeava a magia das sombras.
- Repare, dizia-lhe o pintor numa inflexão paciente e bem humorada-, repare nesse almofariz. E nas cascas dos ovos. É assim que se faz a mistura. Um pouco de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.
O visitante permanece silencioso. Esforça-se por recuperar a sua personalidade de lojista...
- Razão tinha Vossa Excelência. Dois ovos por dia, claro. Não precisava de mais. Desculpe ter duvidado. Confesso que ainda me sinto confuso. Vender ovos para alguém pintar! -Apoiou-se no estrado, fitando o cliente com serena admiração: -Tenho a honra de estar falando com...
- Luis Dourdil, pintor.
- Agradecido a Vossa Excelência. O pior é que a minha mulher
não vai acreditar.
Fernando Namora
Fernando Namora
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