«O Vendedor de Passados»
José Eduardo Agualusa
358- «O VENDEDOR DE PASSADOS»
[Félix Ventura começa a escrever um diário]
Encontrei esta manhã Eulálio morto. Pobre Eulálio. Estava
caído aos pés da minha cama, com um enorme escorpião, um bicho horrível, também
morto, preso entre os dentes. Morreu em combate, como um bravo, ele que não se
achava corajoso. Enterrei-o no quintal, amortalhado num lenço de seda, um dos
meus melhores lenços, junto ao tronco do abacateiro. Escolhi a face do
abacateiro voltada para poente, húmida, coberta de musgo, porque ali faz sempre
sombra. Eulálio, como eu, não apreciava o sol. Vai fazer-me falta.
Decidi começar a escrever este diário, hoje mesmo, para
persistir na ilusão de que alguém me escuta. Nunca mais terei um ouvinte como
ele. Acho que era o meu melhor amigo. Deixarei, suponho, de o encontrar em
sonhos. A memória que me resta dele, aliás, parece-se cada vez mais, a cada
hora que passa, com uma construção de areia. A memória de um sonho. Talvez eu o
tenha sonhado inteiramente — a ele, a José Buchmann, a Edmundo Barata dos Reis.
Não me atrevo a escavar o quintal, junto à buganvília,
porque me aterroriza a possibilidade de não encontrar nada. A Ângela Lúcia, se
a sonhei, sonhei-a muito bem. Os postais que me continua a enviar, um a cada
três ou quatro dias, são quase reais.
Comprei na Altair, através da Internet, um imenso mapa do
mundo. A loja da Altair em Barcelona é a minha livraria preferida. Sempre que
vou a Barcelona guardo dois ou três dias para me perder na Altair, a consultar
livros e mapas, álbuns de fotografias, a planear as viagens que farei um dia; a
planear principalmente aquelas viagens que nunca farei. Pendurei o mapa na
parede da sala, preso a uma placa de corticite, ao lado das polaroides de
Ângela Lúcia.
Todos os postais trazem uma nota mencionando o local onde a
imagem foi recolhida e assim posso facilmente acompanhar o percurso dela
(espetei em cada localidade um alfinete de cabeça verde). Vejo que Ângela
desceu o Amazonas até Belém do Pará. Calculo que tenha depois alugado um carro,
ou, parece-me o mais provável, apanhado um ônibus, em direção ao Sul.
Enviou-me de São Luís do Maranhão a silhueta em chamas de um
pequeno barco com uma vela quadrada: Rio Anil, nove de fevereiro. Quatro dias
depois chegou-me a imagem de uma mão de criança lançando um avião de
papel. Um rio desliza ao fundo, gordo e pardo sob o lento sol: Ilhas Canárias,
Delta do Parnaíba, treze de fevereiro frete de fevereiro. Não me é difícil
imaginar o caminho que tomará nos próximos dias.
Comprei ontem um bilhete para o Rio de Janeiro. Voarei
depois de amanhã do aeroporto Santos Dumont para Fortaleza. Creio que não me
vai ser difícil dar com ela. Se José Buchmann conseguiu encontrar um patrício,
um acorrentado, dentro de uma cabina telefónica, em Berlim, tendo por única
referência um semáforo, mais rapidamente eu encontrarei uma mulher que gosta de
fotografar nuvens. Não sei o que farei quando a encontrar. Espero que tu, meu
bom Eulálio, onde quer que estejas, me ajudes a tomar a decisão correta.
Sou animista. Sempre fui, mas só há pouco isso me ocorreu.
Passa-se com a alma algo semelhante ao que acontece à água: flui. Hoje está um
rio. Amanhã estará mar. A água toma a forma do recipiente. Dentro de uma
garrafa parece uma garrafa. Porém, não é uma garrafa. Eulálio será sempre
Eulálio, quer encarne (em carne), quer em peixe.
Vem-me à memória a imagem a preto e branco de Martin Luther
King discursando à multidão: eu tive um sonho. Ele deveria ter dito antes: eu
fiz um sonho. Há alguma diferença, pensando bem, entre ter um sonho ou fazer um
sonho.
Eu fiz um sonho.
José Eduardo Agualusa
Gosto muito do José Eduardo Agualusa. Gosto muito do que ele escreve. Gosto desde o princípio, mas sempre me parece que lhe falta dizer alguma coisa naquilo que escreve. Deve ser apenas impressão minha, não sei!
ResponderEliminarTalvez a «impressão» do que falta dizer ou escrever, seja motivo mais que suficiente para voltar a ler. Digo eu, mas sem certezas...
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