«A Fuga de Wang‑Fô», por Marguerite Yourcenar.
«A Fuga de Wang‑Fô»
Conto de Marguerite Yourcenar
361- «A FUGA DE WANG‑FÔ»
"O velho pintor Wang‑Fô e o seu discípulo Ling andavam
pelas estradas do reino dos Han. O reino dos Han: era o nome por que naquele
tempo era conhecida a grande China.
Ninguém pintava melhor que Wang‑Fô as montanhas a sair do
nevoeiro, os lagos sobrevoados pelas libélulas e as enormes vagas do Pacífico
vistas a partir da costa. Dizia‑se que as suas imagens santas atendiam
imediatamente qualquer prece; sempre que ele pintava um cavalo, tinha que o
mostrar preso a uma estaca ou seguro pelas rédeas, pois se assim não fosse o
cavalo escapava‑se do quadro a galope e nunca mais ninguém lhe punha a vista em
cima. Os ladrões não se atreviam a entrar em casa de quem possuísse um cão de
guarda pintado por Wang‑Fô.
Wang‑Fô poderia ter sido rico, mas gostava mais de dar que
vender. Distribuía as pinturas que fazia por quem as apreciasse verdadeiramente
ou então trocava‑as por uma tigela de comida. O seu carinho ia todo para os
pincéis, para os rolos de seda ou de papel de arroz e para os pauzinhos de
tinta de diversas cores que ele friccionava contra uma pedra para misturar o pó
numa pequena porção de água. [...].
Uma tarde, ao pôr‑do‑sol, chegaram aos subúrbios da capital
e Ling arranjou uma estalagem onde Wang‑Fô pudesse passar a noite. O velho aconchegou‑se
nuns farrapos e Ling encostou‑se a ele para aquecê‑lo, porque a Primavera ainda
mal tinha começado e o gelo continuava a cobrir o chão de terra batida. Ling
lamentava a sujidade da estalagem, mas o velho maravilhava‑se com as sombras
bruxuleantes que uma lâmpada mortiça projectava nas paredes e com os
enigmáticos desenhos que faziam no tecto as marcas da fuligem. De madrugada,
ressoaram pesados passos nos corredores e atrás deles ordens gritadas numa
língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando‑se de que na véspera roubara um bolo
para a refeição do mestre. Certo de que o vinham prender, perguntou aos seus
botões quem é que iria ajudar o velho a passar o vau do próximo rio.
Os soldados entraram com lanternas. A chama que se filtrava
através do papel multicolor punha nos seus rostos reflexos encarnados, amarelos
e azuis. Rugiam como animais ferozes e a corda dos seus arcos vibrava a cada
grito. Um deles pousou a mão com rudeza na nuca de Wang-Fô, que não podia
deixar de admirar os bordados dos seus mantos. Amparado pelo discípulo, Wang‑Fô
seguiu‑os cambaleando através das estradas aos altos e baixos. [...].
Chegaram à entrada do palácio imperial. As paredes violetas
insinuavam em pleno dia um tom crepuscular. Os soldados obrigaram Wang‑Fô a
atravessar salas redondas ou quadradas cujas formas simbolizavam as estações,
os pontos cardeais, a lua e o sol, a longevidade e a Omnipotência. As portas
giravam sobre si próprias emitindo notas musicais e o seu encadeamento era de
forma a permitir que quem atravessasse o palácio do nascer ao pôr‑do‑sol
ouvisse a escala toda. Por fim, o silêncio tornou‑se tão grande que mal se
ousava respirar; um escravo soergueu um reposteiro e o pequeno grupo entrou na
sala onde reinava o Filho do Céu. [...].
O Mestre do Celeste estava sentado num trono de jade, e,
cobertas de rugas, as mãos dele assemelhavam-se às dum ancião, se bem que ele
ainda mal tivesse vinte anos. [...]
- Dragão Celeste, disse Wang‑Fô prosternado, sou velho, sou
pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil
Vidas; eu tenho apenas uma e que vai acabar. Que mal é que eu te fiz? Ataram as
minhas mãos que nunca te causaram nenhum dano.
- Perguntas‑me o que é que me fizestes, velho Wang‑Fô? -
disse o Imperador. [...] Vou dizer‑to. O meu pai reuniu uma colecção de
pinturas tuas no fundo do palácio e foi nessas salas que eu fui criado, velho
Wang‑Fô, porque não me deixavam sair, com medo de que visse os infelizes e me
afligisse o espírito ou agitasse o coração. Tirando um ou outro velho criado
que aparecia o menos possível, a ninguém mais era permitido entrar nos meus
domínios, não fosse quem passasse conspurcar‑me com a sombra. De noite, quando
não conseguia dormir, ficava a olhar os teus quadros e, durante dez anos, não
houve uma só noite em que eu os não tenha contemplado. De dia, sentado num
tapete de que já sabia de cor todos os desenhos, descansando as mãos nos meus
joelhos de seda amarela, eu imaginava o mundo - com o país de Han no meio -
semelhante à planície côncava e monótona da mão profundamente atravessada pelos
Cinco Rios. A toda a sua volta, o mar onde os monstros nascem e, mais longe
ainda, as montanhas onde assenta o céu. Tudo isto eu imaginava com a ajuda dos
teus quadros. Aos dezasseis anos reabriram‑se as portas que me separavam do
mundo; subi ao terraço do palácio para ver as nuvens, mas elas não se
comparavam com as dos teus crepúsculos. Mandei vir uma liteira; sacudido
através de estradas atulhadas de lama e de pedras com que eu não contava,
percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins repletos de
mulheres parecidas com flores e as tuas florestas cheias de antílopes e de
pássaros. Os calhaus da beira‑mar fizeram com que eu me enjoasse dos oceanos; a
fealdade das aldeias impede‑me de ver a beleza dos arrozais e o riso áspero dos
meus soldados dá‑me vómitos. Mentiste‑me, Wang‑Fô, velho aldrabão: o reino de
Han não é o mais maravilhoso dos reinos e não sou eu o Imperador. O único
império onde vale a pena reinar é aquele onde tu entras, velho Wang, pelo caminho
das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre planícies onde a
neve não derrete e sobre campos de flores que nunca morrerão. E é por isso,
Wang‑Fô, que eu encontrei o suplício que te estava reservado, a ti cujas
pinturas me fizeram detestar o que possuo e desejar o que jamais possuirei. E,
para te fechar na única prisão de onde não poderás sair, decidi queimar‑te os
olhos, já que os teus olhos são as tuas portas mágicas por onde tu penetras no
teu reino. E, já que as tuas mãos são as duas estradas de dez ramificações, que
vão até ao coração do teu império, também decidi cortar‑te as mãos. Percebes tu
agora, velho Wang‑Fô?
Ouvindo esta sentença, o discípulo Ling arrancou da cintura
uma faca amolgada e precipitou‑se sobre o Imperador. Dois guardas
sustiveram-no. O Filho do Céu sorriu e acrescentou com um suspiro:
- Também te odeio, velho Wang‑Fô, por te saberes fazer amar.
Matem esse maltrapilho.
Ling deu um salto para a frente, afim de evitar que o sangue
manchasse a roupa do seu mestre. Um carrasco decapitou‑o com um sabre. Os
criados levaram os restos mortais, e Wang‑Fô, desesperado, admirou a
lindíssima mancha escarlate que o sangue do discípulo deixara no pavimento de
pedra verde.
O Imperador fez um sinal e dois escravos enxugaram os olhos
de Wang‑Fô.
- Ouve, velho Wang‑Fô, disse o Imperador, e pára de chorar,
porque não é este o momento mais apropriado. Há na minha colecção das tuas
obras um quadro admirável onde as montanhas, o estuário dum rio e o mar se
reflectem, é claro que infinitamente reduzidos, mas com uma intensidade que
ultrapassa a dos próprios objectos, como as figuras reflectidas na superfície
duma esfera. Mas não terminastes esse quadro, Wang‑Fô, e posso obrigar‑te a
levá‑lo a cabo. Se te recusares, mando queimar todas as tuas obras antes do teu
suplício e serás como um pai que viu morrer à sua frente toda a sua
descendência. [...].
Wang‑Fô começou por tingir de cor‑de‑rosa a extremidade duma
nuvem pousada numa montanha. Depois, acrescentou à superfície do mar uma pequena
ondulação que tornou ainda mais profunda a sua calma. Estranhamente, o
pavimento de jade começara a ficar húmido, mas Wang‑Fô, completamente absorvido
pelo quadro, não dava conta de que já estava a trabalhar com os pés na água.
O frágil escaler, encorpado pelas pinceladas do pintor,
ocupava agora todo o primeiro plano do rolo de seda. Um ruído de remos ergueu‑se
de repente na distância, vivo e cadenciado como um bater de asas. Aproximou‑se,
encheu a sala toda, depois cessou. Pequenas gotas reluziam, imóveis, suspensas
dos remos do barqueiro. Há muito que o ferro em brasa destinado aos olhos de
Wang‑Fô se tinha apagado no braseiro do carrasco. Com a água a dar‑lhes pelos
ombros, os cortesãos, paralisados pela etiqueta, erguiam‑se nas pontas dos pés.
A água por fim atingiu o nível do coração imperial. O silêncio era tão profundo
que teria sido possível ouvir lágrimas cair.
Era mesmo Ling. Trazia a roupa de todos os dias e na manga
direita viam‑se ainda as marcas dum rasgão que ele não tivera tempo de coser, essa
manhã, antes da chegada dos soldados. Mas à volta do pescoço trazia um estranho
lenço encarnado.
Sem deixar de pintar, Wang‑Fô disse‑lhe docemente:
- Julgava‑te morto.
- Estando você vivo, disse Ling cheio de respeito, como é
que poderia ter morrido?
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade
reflectia‑se na água, de maneira que Ling parecia navegar no interior duma
gruta.
As tranças dos cortesãos submersos ondulavam à superfície
como cobras e a cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Repara, meu discípulo, disse Wang‑Fô melancolicamente.
Esses infelizes vão morrer, se é que não morreram já. Nunca supus que no mar
houvesse tanta água que pudesse afogar um imperador. Poderemos fazer ainda
alguma coisa?
- Não te preocupes, Mestre, murmurou o discípulo. Não tarda
que eles estejam de novo em seco, sem mesmo se lembrarem de ter molhado as
mangas. Só o Imperador é que há‑de guardar no coração um pouco do amargor do
mar. Gente como esta não foi feita para se perder dentro dum quadro.
E acrescentou:
- O mar é belo, o vento favorável, as aves marinhas andam a
fazer ninhos. Vamos embora, Mestre, para o lá de lá das ondas.
- Vamos, disse o velho pintor.
Wang‑Fô tomou conta do leme, e Ling debruçou‑se sobre os
remos. O seu ruído voltou a encher a sala, firme e regular como o bater dum
coração. O nível da água ia baixando insensivelmente em torno dos enormes
rochedos verticais que eram de novo colunas. Não tardou que apenas algumas
esparsas poças de água brilhassem nas depressões do pavimento de jade. Os
vestidos dos cortesãos estavam secos, mas o Imperador tinha alguns flocos de
espuma na franja do casaco.
O rolo desdobrado e acabado por Wang‑Fô estava encostado a
uma tapeçaria. Um barco ocupava todo o primeiro plano. Ia‑se afastando
lentamente, deixando atrás de si uma estreita esteira que se voltava a fechar
no mar imóvel. Já não se distinguia a cara dos dois homens sentados no escaler,
embora ainda se visse o lenço encarnado de Ling e a barba de Wang‑Fô flutuando
ao vento.
A pulsação dos remos foi enfraquecendo, por fim cessou,
obliterada pela distância. O Imperador, dobrado para a frente, com a mão em
pala sobre os olhos, via afastar‑se o barco de Wang que já não era senão uma
mancha imperceptível na palidez crepuscular. Finalmente o barco contornou um
rochedo que fechava a entrada do mar alto; a esteira extinguiu‑se na superfície
deserta e o pintor Wang‑Fô assim como o seu discípulo Ling desapareceram para
sempre sobre aquele mar de jade azul que Wang‑Fô tinha acabado de
inventar."
Marguerite Yourcenar
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