«O Presente dos Reis Magos»
Conto de O. Henry
347- «O PRESENTE DOS REIS MAGOS»
Um dólar e oitenta e sete centavos. Era tudo. E sessenta
centavos eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono
do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda
acusação de parcimónia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou
o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete centavos. E no dia seguinte seria Natal.
Não havia evidentemente mais nada a fazer senão atirar-se ao
pequeno sofá puído e chorar. Foi o que Della fez. O que leva à reflexão
moral de que a vida é feita de soluços, fungadelas e sorrisos, com predomínio
das fungadelas.
Della terminou de chorar e cuidou do rosto com a esponja de
pó. Postou-se junto à janela e ficou a contemplar melancolicamente um gato
cinzento caminhando sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento. Amanhã seria
Dia de Natal e ela tinha apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar
o presente de Jim. Estivera a economizar tostão por tostão havia meses, e esse
era o resultado. As despesas tinham sido maiores do que calculara. Sempre são.
Apenas um dólar e oitenta e sete centavos para comprar o presente de Jim. O seu
Jim. Muitas horas felizes passara ela planejando comprar-lhe alguma coisa
bonita. Alguma coisa fina, rara, legítima ” algo que estivesse bem perto de
merecer a honra de ser possuída por Jim.
Subitamente, afastou-se da janela e postou-se diante de um
espelho. Seus olhos estavam brilhantes mas sua face perdeu a cor ao cabo de
vinte segundos. Num gesto rápido, soltou o cabelo e deixou desdobrar-se em toda
a sua extensão.
Ora, os James Dillingham Youngs tinham dois haveres de que
muito se orgulhavam. Um era o relógio de ouro de Jim, que pertencera a seu pai
e a seu avô. O outro era o cabelo de Della.
O cabelo de Della, pois, caiu-lhe pelas costas, ondulando e
brilhando como uma cascata de águas castanhas. Chegava-lhe abaixo do joelho e
quase lhe servia de manto. Ela então o prendeu de novo, célere e nervosamente.
A certo momento, deteve-se e permaneceu imóvel, enquanto uma ou duas lágrimas
caíam sobre o puído tapete vermelho.
Vestiu o velho casaco marron; pôs o velho chapéu marron.
Desceu rapidamente a escada que levava à rua. Parou onde havia um letreiro
anunciando: “Mme Sofronie, Artigos de Toda Espécie para Cabelos”. Della subiu a correr um lance de escada e se
deteve no alto, arquejante para recompor-se. Madame, corpulenta, alva demais,
fria.
- Quer comprar meu cabelo? ” perguntou Della.
- Eu compro cabelo ” disse Madame. ” Tire o chapéu e vamos
dar uma olhada no seu.
Despenhou-se, ondulante, a cascata de águas castanhas.
- Vinte dólares ” ofereceu Madame, erguendo a massa com mão
prática.
- Dê-me o dinheiro depressa ” pediu Della.
Oh, as duas horas seguintes voaram com asas róseas. Della se
pôs a vasculhar as lojas à procura de um presente para Jim.
Encontrou-o por fim. Fora feito para ele e para ninguém
mais. Nada havia que se lhe parecesse nas outras lojas, e ela as revirara de
alto a baixo. Era uma corrente de platina, curta, simples e de modelo discreto,
proclamando adequadamente seu valor por sua mesma substância e não por qualquer
ornamentação espúria. Era digna até do relógio. Tão logo a viu, soube que tinha
de ser de Jim. Era como ele. Serenidade e valor ” a descrição se aplicava a
ambos. Vinte e um dólares cobraram-lhe por ela, e Della correu para casa com os
oitenta e sete centavos. Com aquela corrente no relógio, Jim poderia
preocupar-se decentemente com o tempo na frente de qualquer pessoa. Grande como
era o relógio, ele í s vezes o consultava meio envergonhado devido
à velha tira de couro que usava em lugar de corrente.
Quando Della chegou em casa, seu embevecimento cedeu lugar a
um pouco de prudência e razão. Pegou os ferros de frisar, acendeu o gás e pôs-se
a reparar os estragos causados pela generosidade acrescida ao amor. O que
sempre é uma tarefa muito árdua, queridos amigos ” uma tarefa gigantesca.
Ao cabo de quarenta minutos, sua cabeça estava coberta de
pequenos caracóis cerrados, que a faziam parecer, admiravelmente, um menino
vadio.
Às sete horas, o café estava preparado e uma frigideira
quente no fogão esperava o momento de fritar as costeletas. Jim nunca se
atrasava. Della dobrou a corrente no côncavo da mão e sentou-se a um canto da
mesa, perto da porta pela qual ele sempre entrava. Ouviu então seus passos no
primeiro lance da escada e empalideceu por um instante.
- Oh, Deus, fazei-o por favor achar-me ainda bonita!
A porta se abriu, Jim entrou e a fechou. Parecia magro e
muito sério. Pobre sujeito, apenas vinte e dois anos e já responsável por uma
família! Precisava de um sobretudo novo e não tinha luvas.
Jim Avançou alguns passos. Seus olhos estavam fitos em Della
e havia neles uma expressão que ela não conseguia ler e que a aterrorizava. Não
era raiva, nem surpresa, nem desaprovação, nem horror; não era nenhum dos
sentimentos para os quais ela estava preparada.
Della esgueirou-se para fora da mesa e se encaminhou para
ele.
- Jim, querido ” gritou ” não me olhe desse jeito! Mandei
cortar o cabelo e o vendi porque não poderia passar o natal sem dar um presente
a você. Ele crescerá de novo… não se aborreça, por favor. Meu cabelo cresce
terrivelmente depressa. Diga “Feliz Natal!”,
Jim, e fiquemos felizes. Você não sabe que coisa bonita, que belo presente
tenho para você.
- Mandou cortar o cabelo? ” perguntou Jim a custo, como se
não tivesse ainda compenetrado desse fato patente após o mais árduo esforço
mental.
- Cortei-o e vendi-o ” disse Della. ” Você não continua a
gostar de mim do mesmo jeito, então? Não precisa procurar por meu cabelo, foi
vendido, como lhe disse… vendido, não está mais aqui. À véspera de Natal,
querido. Seja bonzinho comigo, fiz isso por sua causa. Ninguém poderá jamais avaliar
o meu amor por você. Posso fritar as costeletas, Jim?
Emergindo do seu transe, Jim pareceu despertar rapidamente.
Abraçou a sua Della. Os magos trouxeram presentes valiosos, mas isso não estava
entre eles. Esta asserção obscura será esclarecida mais tarde.
Jim tirou um pacote do bolso e atirou-o sobre a mesa.
- Não me interprete mal, Della ” disse. ” Não acho que haja
alguma coisa, corte de cabelo, raspagem ou champô, capaz de fazer-me gostar
menos da minha mulherzinha. Mas se você abrir este pacote, poderá ver por que
fiquei abalado no princípio.
Alvos dedos ligeiros desfizeram o atilho e o embrulho.
Ouviu-se então um grito extático de alegria, e depois, ai!, uma súbita mudança
feminina para as lágrimas e os gemidos, que exigiram o imediato emprego de todos
os poderes de consolação do senhor do apartamento.
Pois sobre a mesa jaziam Os Pentes ” o jogo de pentes para
cabelos que Della adorara havia muito numa vitrine. Belos pentes, de tartaruga
legítima, orlados de pedraria ” da cor exata para combinar com seu lindo
cabelo. Eram pentes caros, ela o sabia, e seu coração se limitara a desejá-los
e a suspirar por eles sem a menor esperança de vir um dia a possuí-los. E
agora pertenciam-lhe, mas as tranças que os anelados enfeites deveriam adornar
não mais existiam.
Ela, porém, os apertou contra o peito e, por fim, pode
erguer os olhos nublados, sorrir e dizer:
- Meu cabelo cresce tão depressa, Jim!
Jim ainda não vira o seu belo presente. Ela lho estendeu
ansiosamente na palma da mão aberta. O fosco metal precioso parecia brilhar com
o reflexo do seu jubilante e ardente espírito.
– Não é uma beleza, Jim? Vasculhei a cidade toda para
achá-lo. Doravante, você terá de ver as horas uma centena de vezes por dia.
Dê-me o seu relógio. Quero ver como fica nele.
Em lugar de obedecer, Jim deixou-se cair no sofá, pôs as
mãos atrás da cabeça e sorriu:
– Della ” disse -, vamos por os nossos presentes de Natal de
lado e deixá-los por algum tempo. São lindos demais para poderem ser usados
agora. Vendi o relógio para comprar os seus pentes. Que tal se você fritasse as
costeletas agora?
O. Henry
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