«Os Três Reis do Oriente», por Sophia de Mello Breyner Andresen, é o conto escolhido nesta noite de 5 para 6 de Janeiro de 2015, noite em que o Grupo de cantadores dos Reis de Alandroal percorrem as ruas da vila cantando os Reis ou Janeiras, em celebração ao nascimento do Deus Menino e a chegada dos Três Reis do Oriente a Belém. Esta publicação «Especial», em Outros Contos, com dedicatória especial ao Grupo de Cantadores dos Reis de Alandroal no espaço de literatura, através de um dos mais belos contos da extraordinária escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. Bem hajam, e cantem enquanto puderem!
Poet'anarquista
Por aqui- «ADORAÇÃO
DOS REIS MAGOS» VI
(Publicação referente a 6 de Janeiro de 2013)
«Os Três Reis do Oriente»
(Publicação referente a 6 de Janeiro de 2013)
«Os Três Reis do Oriente»
«Especial», Outros Contos
379- «OS TRÊS REIS DO ORIENTE»
I
GASPAR
Naquele tempo, na cidade de Kalash, o príncipe Zukarta
instaurou o culto do bezerro de oiro.
A estátua poisava nas multidões submissas os seus olhos espantados, muito
abertos, pintados de branco e de preto. No fundo das suas pupilas aflorava
quase uma interrogação, como se a extensão do seu poder o surpreendesse. Era um
jovem bezerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de testa obtusa,
curta e franzida. As suas quatro patas, firmemente poisadas na terra, davam uma
grande impressão de firmeza e estabilidade que tranquilizava o coração dos seus
fiéis. E em todo o seu corpo brilhava o oiro, oiro compacto, duro, pesado,
faiscante.
Em frente do ídolo as mulheres curvadas sacudiam sobre o mármore claro dos
degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos confins do deserto, dos longínquos
oásis, das aldeias perdidas, chegavam homens que depunham em frente do altar a
sua oferta: vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juízes e
chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro. Atrás deles
vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os tecelões. Beijavam os degraus
do altar e depunham no chão a sua oferta: traziam oiro ao oiro. Até os
sacerdotes da Lua e os seus fiéis e acólitos se prostravam, de joelhos, com a
cabeça tocando o solo, em frente do ídolo novo de Kalash.
Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois o culto do oiro era
o fundamento do seu poder.
Raros eram aqueles que não acorriam ao templo, cada vez mais raros. Os muito
pobres, os muito envergonhados, os muito humilhados, não ousavam apresentar-se.
Eles eram como uma raça à parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que
marcava aqueles que o Bezerro não amava. No fundo das suas almas tão humilhadas
que mal ousavam pensar o seu próprio pensamento, os muito pobres, os muito
envergonhados esperavam outro deus.
Eles e Gaspar.
Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:
— Porque não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a
oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido
de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um
traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza de Kalash.
Estarás vendido aos nossos inimigos?
Gaspar respondeu:
— Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento,
que a Terra e o Céu me anunciam.
Ouvindo esta resposta, os chefes das tribos e os homens bons de Kalash
disseram:
— Separamo-nos de ti porque te separaste de nós e renegaste os nossos caminhos.
Não terás mais parte nas nossas assembleias. Nem serás mais ouvido nos nossos
conselhos, nem partilharás dos nossos festejos e banquetes. E também não terás
lugar na nossa força. Os soldados não protegerão a tua casa nem as tuas
caravanas. E serás presa fácil dos bandidos. Não receberás a protecção das nossas
leis, e os nossos juízes julgarão em sentença contra ti, e a tua razão será
como um punhado de cinza. Como a gente da ralé não terás nem protecção nem
defesa enquanto não te curvares perante o altar do Bezerro para adorar os
ídolos que nós adoramos.
«Os Três Reis do Oriente»
«Especial», Outros Contos
E Gaspar respondeu:
— O meu deus é em mim como uma fonte que pára de correr e é em meu redor como o
muro de uma fortaleza.
Então os notáveis de Kalash sacudiram a poeira dos seus sapatos e saíram do
palácio.
Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre Gaspar. Os bandidos
assaltaram as suas caravanas e os ladrões saquearam os seus palmares. Mãos
misteriosas apedrejavam de noite a sua casa e na água das suas cisternas
apareciam frutos podres e aves mortas a boiar.
E começou o tempo da solidão.
Nos frescos pátios do palácio não penetraram mais os visitantes e a água
correndo nos tanques deixou de acompanhar o leve rumor das conversas. Os
parentes e os amigos desapareceram como que devorados pela penumbra e todas as
coisas pareciam envolvidas em escândalo e terror.
Porém o tempo crescia.
E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solidão criava em seu redor um
transparente espaço de limpidez onde os instantes avançavam um por um e o
universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a mesma palavra inumeravelmente
repetida.
E debruçado sobre o tempo Gaspar pensava: «Que pode crescer dentro do tempo
senão a justiça?»
Ajoelhado no terraço Gaspar olhava o céu da noite.
Olhava a alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa, que simultaneamente
mostrava e escondia.
E disse:
— Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas o ressoar do teu
silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua
ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar
uma escrita difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu
ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu
pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me
dizes.
Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma
palavra de repente dita na muda atenção do céu.
Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma
estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um pouco mais próxima e
mais clara e que, muito devagar, deslizava para o Ocidente.
E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu palácio.
«Os Três Reis do Oriente»
«Especial», Outros Contos
II
MELCHIOR
A placa de barro tinha passado de geração em geração, de
idade em idade, de mão em mão. Nela estava escrito que ao mundo seria enviado
um redentor e que uma estrela se ergueria no Oriente para guiar aqueles que
buscavam o seu reino.
A placa era um pequeno rectângulo de argila, enegrecido pelo tempo, de aspecto
frágil, pobre e gasto. Era um prodígio que tivesse atravessado, sem se perder,
tantos séculos de ruínas e opulências, saques, incêndios e guerras. Era um
prodígio que tivesse podido atravessar sem se perder a ambição, a violência, a
agitação e a indiferença dos homens.
Estava ali, no palácio, alinhada ao lado de milhares de placas que enumeravam
vitórias, batalhas, massacres e riquezas.
Os seus caracteres estavam semiapagados pelo tempo e a sua escrita era tão
antiga que se tornava difícil decifrá-la com exacto rigor. Muitas leituras eram
possíveis.
Por isso o rei Melchior convocou três assembleias de sábios para que juntos
averiguassem qual era a justa interpretação daquele texto antiquíssimo.
Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham aprendido toda a ciência
das bibliotecas e que conheciam até ao menor detalhe a escrita, a linguagem, os
usos, os costumes, os anais e os códigos dos tempos idos.
A assembleia reuniu-se durante um mês no palácio do rei. Era o meio do Verão e
o calor poisava pesadamente sobre os terraços cegos de sol. Nos jardins as
palmeiras roçavam umas nas outras, com um rumor metálico, as suas folhas
afiadas e duras como serras.
Ao cair das tardes os sábios sentavam-se em círculo no pátio interior do
palácio. Melchior presidia. Um fino murmúrio de água correndo nos tanques
acompanhava os debates. Os escravos descalços circulavam em silêncio servindo
vinho de tâmara temperado com neve das montanhas.
O círculo de homens sentados descrevia uma área vazia e no centro dessa área
tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de
barro. Parecia extremamente pequena e insignificante, no meio de tanto espaço e
opulência, parecia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado
pelo tempo.
Durante longos debates, durante trinta dias, os sábios estudaram e examinaram
meticulosamente cada linha dos caracteres antiquíssimos.
E ao trigésimo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do templo da Lua, e disse:
— Creio que a leitura que tu, ó rei, fizeste deste texto não é a verdadeira.
Pois leste: Ao mundo será enviado um redentor e uma estrela subirá no Oriente
para guiar aqueles que buscam o seu reino.» Mas verdadeiramente é outra a
significação deste texto antigo: assim, os caracteres onde leste «redentor»
significavam, na remota era em que foi gravada esta placa, não «redentor» mas
sim «grande rei»; e os caracteres onde leste «será» e «subirá» não exprimem
formas verbais do futuro mas sim formas verbais do passado; e o verbo buscar
não está no presente mas sim no pretérito perfeito; e onde leste «para guiar»
deverá ser lido, de acordo com os métodos de decifração dos textos antigos,
«guiando». Portanto, ó rei, ao contrário daquilo que julgaste ler, este texto
não se refere ao futuro mas sim ao passado, e não anuncia o advento de nenhum
salvador, mas antes glorifica as obras de um grande personagem dos tempos idos.
Assim a leitura correcta deste texto é, em minha opinião, a seguinte: «Ao mundo
foi enviado um grande rei que como uma estrela dominou o Oriente guiando
aqueles que buscaram o seu reino.»
Quando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad, arquivista- mor do palácio,
e disse:
— Grande é a ciência de Negurat. Mas a interpretação da escrita antiga tem
terríveis dificuldades. Não há dúvida que no texto apresentado devemos ler
«grande rei» e não «redentor ». No entanto, não concordo com aquilo que diz
respeito às formas verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram
realmente no futuro. E também discordo da forma como foram lidas as palavras
«guiar», «buscam» e «reino».
E penso ainda que o verbo «subir» tem aqui o sentido de «dominar». De forma
que, na minha opinião, a leitura correcta do texto é esta: «Ao mundo será
enviado um grande rei que como uma estrela dominará o Oriente para engrandecer
aqueles povos que aceitarem o seu poder.» Pois esta inscrição é de facto uma
profecia, mas uma profecia que já foi cumprida. É evidente que o grande rei é o
grande Alexandre que dominou todo o Oriente até ao reino de Pórus e que morreu,
como sabeis, em Babilónia.
E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho sábio Akki, que disse:
— Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade a leitura deste
antiquíssimo texto levanta tantas dúvidas e são tantas as interpretações que
podemos propor, que verdadeiramente, ó rei, nada podemos concluir.
«Os Três Reis do Oriente»
«Especial», Outros Contos
Então levantou-se Melchior e disse:
— Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei a perguntar, a
escutar e a esperar.
E no mês seguinte reuniu-se no palácio real a assembleia dos letrados.
Melchior propôs-lhes as dúvidas e as interpretações dos historiadores e durante
trinta dias os letrados estudaram o texto.
E no trigésimo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados em círculo e
estando no meio do círculo a mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa
de barro, levantou-se Ken- -Hur e disse:
— A poesia não se exprime directamente. Ora o texto que temos em nossa frente é
um poema e por isso mesmo deve ser tomado como um metáfora que não se refere
nem ao passado nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas só ao
mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre voltado para o devir e
para a esperança. Este texto não fala de factos reais e apenas simboliza o
espírito criador do homem.
Falou em seguida Amer, que disse:
— Este texto é um poema e coloca-se por isso à margem do vivido. O poema não se
refere aquilo que é, mas sim àquilo que não é. Pois a natureza é uma caixa
cheia de coisas da qual o poeta extrai uma coisa que lá não está.
E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:
— Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu
próprio sentido. Assim o sentido de uma rosa é apenas essa própria rosa. Um
poema é um justo acordo de palavras, um equilíbrio de sílabas, um peso denso, o
esplendor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si
próprio e, como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa
mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria.
E tendo terminado o debate, levantou-se Melchior, que disse:
— Eu vos agradeço as vossas palavras. Por mim continuarei a buscar, a escutar e
a esperar.
Então retiraram-se os letrados e o rei ficou sozinho no pátio, em frente da
placa de barro, escutando o correr da água e o cair da noite. E no mês seguinte reuniram-se no palácio os homens
sapientes. Melchior propôs-lhes as dúvidas dos historiadores e dos letrados e a
nova assembleia deliberou durante trinta dias.
E no trigésimo dia levantou-se Kish, que disse:
— As multidões ignorantes curvam-se em frente dos ídolos, mas aqueles que
meditam conhecem a solidão do universo. Que redentor poderemos esperar? O
universo é como uma máquina bem regulada que sem princípio nem fim gira
lentamente através das idades e dos ciclos. Nas constelações e nas luas, nos
triângulos e nos círculos, encontrarás as leis dos números que se cumprem e se
cumprirão inexoravelmente. Que redenção poderemos esperar?
E falou depois Maro, que disse:
— Os deuses que existiram extinguiram-se há muito e aquilo que adoramos é apenas
a cinza do divino. Qual é, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo?
Onde está aquele que ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Ísis ou
de Assur? Vivemos um tempo de viuvez e todas as coisas se tornaram cegas e
surdas. Num mundo de injustiça e de desordem tentamos sobreviver como animais
perseguidos. Quebrou-se o laço que nos ligava ao universo atento. Podemos bater
com os punhos na terra, podemos implorar com a cabeça tocando a poeira. Ninguém
responderá. Cegou o olhar que nos via e o ouvido que nos escutava secou. Tudo
nos é alheio como um lugar que não nos reconhece. E o brilho dos astros
impassíveis cintila sobre a nossa tristeza. Quem pode esperar que uma estrela
se mova?
Falou em seguida Tot, e disse:
— Nascemos para morrer. Toda a nossa esperança se resolverá em cinza. Onde está
o homem que não morreu? O próprio Alexandre, filho de Ámon, que estabeleceu o
seu Império desde o Egipto até ao reino de Pórus, morreu miseravelmente nos
palácios da Babilónia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia mostrar a
natureza de um Deus, e era tão grande a sua perfeição que ninguém a podia
julgar mortal. Quem poderia acreditar que morresse o seu corpo equilibrado e
liso como uma coluna, a sua inteligência aguda e limpa como o sol, o seu olhar
direito que simplificava todas as coisas, o seu rosto brilhante como um
estandarte e a sua alegria invencível? Alexandre, príncipe da Macedónia, filho
de Ámon, maravilhamento dos povos, conduziu o destino do homem a seus últimos
limites, de tal forma que nele todos julgaram que a natureza humana tinha
conquistado o divino. Mas Alexandre morreu no trigésimo terceiro ano da sua
vida, no cimo da sua força e da sua glória, em pleno esplendor da sua
juventude. E assim os deuses nos disseram que o homem não pode ultrapassar o
seu destino, e que o seu destino é um destino para a morte. Por isso, ó rei,
que poderemos esperar? Nada pode modificar a condição do homem e nesta condição
não há lugar para a esperança.
Quando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do trono e avançou até
à mesa de pedra. Entre as grandes colunas que rodeavam o pátio, a placa de
argila parecia extraordinariamente frágil e pequena. Mas o rei tocou com a sua
fronte as letras quase apagadas.
Nessa noite, depois de a Lua ter desaparecido atrás das
montanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente, uma
nova estrela.
A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na
grande avenida dos templos já ninguém caminhava. Só de longe em longe se ouvia,
vindo das muralhas, o grito de ronda dos soldados.
E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se
perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela
acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.
E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.
«Os Três Reis do Oriente»
«Especial», Outros Contos
III
BALTASAR
O rei Baltasar amava a frescura dos jardins e sorria ao ver
na água clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de ébano.
E amava a alegria, o rumor e a abundância dos banquetes, e muitas vezes as suas
festas duravam até ao romper do dia.
Porém, certa madrugada, depois de se terem retirado todos os convivas, o rei
ficou na grande sala, sozinho com um jovem escravo que tocava flauta.
E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno de um espaço vazio.
Então o seu coração ficou pesado de tristeza, e Baltasar pensou: «Será possível
que um dia eu me retire da vida como um conviva saciado que se retira de um
banquete? Ou terei sempre a mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos
momentos e dos dias?»
E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para o jardim.
Cá fora, na luz indecisa da antemanhã, o jardim parecia suspenso. A bruma
confundia o desenho claro dos tanques e diluía no ar o contorno das ramagens.
Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras até romper o Sol. E
quando já era dia chegou a um pequeno terraço que ficava no extremo do jardim.
Debruçou-se no parapeito e viu, do outro lado da rua estreita, um homem jovem,
encostado a uma parede, que o olhava.
Baltasar ficou imóvel como se o rosto do outro lhe tivesse batido na cara. Ou
como se o rosto do outro de repente fosse o seu rosto. Ou como se pela primeira
vez na sua vida tivesse visto a cara de outro homem.
O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a evidência nua. Era como
se naquele rosto o cerimonial da vida tivesse retirado a sua máscara e a
realidade mostrasse, sem nenhum véu, o abandono, a dor consciente, a condição
do homem.
Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos desenhavam, sem nenhum
equívoco, o ideograma da fome.
A tristeza subia da mais profunda morada da memória e aflorava inteira à tona
das pupilas. A paciência, como uma leve cinza, poisava na testa, sobre os
beiços, sobre os ombros. E havia nessa paciência uma doçura tal que Baltasar
sentiu de súbito uma vontade aguda de chorar e de se prostrar com a sua própria
cara encostada à terra.
E perguntou:
— Tu, quem és?
— Tenho fome — murmurou o homem.
— Entra — disse Baltasar. — Vou mandar que te sirvam os melhores frutos, as
melhores carnes, os melhores vinhos. Vou mandar que lavem os teus pés com água
perfumada numa bacia de ouro. Vou mandar que te vistam de púrpura. Vou mandar
aos meus músicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias. Vou mandar
vir para ti a tocadora de cítara. Eu próprio colocarei debaixo dos teus pés o
tapete mais precioso, e ficarei sentado ao teu lado para desfazer a tua
solidão, e escutarei as tuas palavras para que possas tomar parte na alegria e
para que as fontes e os jardins do palácio apaguem a tua tristeza.
Porém o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No rosto negro, debruçado
na luz branca do terraço, reconheceu com terror o rosto do rei. E pensou:
«Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu palácio e isto sem
dúvida é um crime. É melhor que eu fuja antes que os guardas cheguem.»
Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que o mundo era governado
por leis que o perseguiam e condenavam, e por isso temia a cada instante ser
acusado e preso por uma razão desconhecida. Caminhava num país que não era o
seu e onde tudo era para ele insegurança e temor.
E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela estreita, sem ver
o gesto de Baltasar que o chamava.
E no palácio o rei disse aos seus guardas:
— Ide e procurai nas ruas um homem jovem magro, vestido de farrapos e que tem
os olhos cheios de tristeza e de paciência.
Porém, ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram:
— Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes que não soubemos
distinguir aquele que tu procuras.
Por isso na manhã seguinte o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de
púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu sozinho do palácio para
procurar o homem.
Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas
triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das palmeiras, percorreu
longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram
para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no
olhar do rei o seu olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que
puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam
grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos como
sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que
estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos, interrogando, para além
da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta
do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os
que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava
com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação sem
margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada,
o fundo do mar da cidade.
E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-
-lhes:
— Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas
nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes.
Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar.
E voltaram passados três dias, e responderam:
— Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as reservas dos teus
armazéns não chegam para saciar os esfomeados. Nem o teu poder chega para
alterar a ordem da cidade. Se cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos
que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é contrário
ao bem do reino.
E o rei lhes respondeu:
— Procuro outra lei e procuro outro reino.
Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si:
— Vemos que ele nos trai.
«Os Três Reis do Oriente»
«Especial», Outros Contos
Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os
deuses.
E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar:
«Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o
domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.»
Seguiu o rei para o segundo altar e leu:
«Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a
abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.»
Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu:
«Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito ágil e
subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios
e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.»
E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes:
— Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos,
para que eu o implore e adore.
Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam:
—Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter
desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:
— Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da
paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei
suportar o que vi se não te vir?
A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente.
O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra.
Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre.
Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria,
a substância imortal da alegria.
E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira.
Sophia de Mello Breyner Andresen
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