«Destinos»
Conto de Miguel Torga
391- «DESTINOS»
Foram uns amores singulares, aqueles. No Junho, as cerdeiras
punham por toda a veiga uma nota viva, fresca e sorridente. As praganas
aloiravam, as cigarras zumbiam, as águas de regadio corriam docemente nas
caleiras, e dos verdes maciços de folhas leves e ondulantes, emoldurados no
céu, espreitavam a primavera, curiosos, milhares de olhos túmidos e vermelhos.
Era domingo. E ele subira por desfastio à velha bical dos Louvados a matar
saudades de menino.
- Não dás um ramo, ó Coiso? - perguntou do caminho a
rapariga.
- Dou, dou! Anda cá buscá-lo. Pela voz, pareceu-lhe logo a
Natália. Mas só depois de arredar a cabeça de uma pernada é que se confirmou.
- Não estás de caçoada? - Falo a sério!
Era bonita como só ela. Delgada, maneirinha, branca, e de
olhos esverdeados, fazia um homem mudar de cor.
- Olha que aceito! - E eu que estimo... Tinha já no chapéu
algumas cerejas colhidas, reluzentes, a dizer comei-me.
- Não teimes muito...
- Valha-me Deus!... A rapariga atravessou então o valado,
entrou na leira e chegou-se, risonha,
- Segura lá na abada... Encandearam os olhos um no outro,
ela de avental aberto, ele de rosto afogueado, deram sinal, e a dádiva desceu,
generosa e doce.
Vista de cima, a Natália ainda cegava mais a gente. O queixo
erguido dava-lhe um ar de criança grande; os seios, repuxados, pareciam
outeiros de virgindade; e o resto do corpo, fino, limpo, tinha uma pureza de
coisa inteira e guardada.
- Terão bicho?
- Têm agora bicho! Ia-te mesmo dar cerejas com bicho!
Sem querer,, a resposta saíra-lhe expressiva demais. O
coração agitou-se um pouco, o instinto, acordado, estremeceu, e os olhos,
culpados, fugiram-lhe do rosto da moça e fixaram-se sonhadoramente no céu.
- Bota cá mais meia dúzia. Já que comecei... À medida que se
enfarruscava de sumo, a Natália ia-se tomando também num fruto que apetecia
colher. Mas recusou-se a vê-la com pensamentos desejosos e atrevidos.
- Segura lá esta pinhoca... Era um lindo ramo que fora
buscar à coroa quase inacessível da árvore. As cerejas, libertas da sombra
protectora das folhas, tinham-se dado inteiramente ao sol, deixando-se
amadurecer por igual, num abandono quente e ditoso.
- Que lindo! - É para que saibas... Concentraram a atenção
um no outro, e de tal modo ficaram fascinados, que se ela não dá um grito de
aviso, com a oferta vinha o doador também ao chão.
- Cautela!
- Não há perigo. No enlevo em que ficara, o desgraçado até
se esqueceu do sítio onde estava.
- Queres mais? - Não, bem hajas... Pôs-se logo a descer, um
pouco atarantado por lhe faltarem já as palavras que lhe havia de dizer cá na
terra. Ela é que entretanto se escapulira. .- Adeus!...
O namoro, contudo, tinha começado. Sem nunca falarem daquela
tarde, sabiam ambos que se amavam e que fora a velha cerdeira bical que lhes
aproximara os corações. Pena elo ser o que era: uma natureza tímida, incapaz de
um acto rasgado e levado ao fim.
Falavam ao cair da tarde, quando a fresca do anoitecer
aligeirava o cansaço das cavas, sem que ninguém reparasse, pois a povoação
aceitara já aquela união como um facto natural e acertado - e o rapaz ainda a
meio do caminho, atarantado e reticente.
- Que diz vossemecê? - perguntava ele à mãe, à pobre
Teodósia, que não via outra coisa na vida senão a felicidade do filho.
- A mim agrada-me... É boa rapariga, e limpa, é jeitosa... -
Lá isso... Dizia, e ficava-se calado, indeciso entre o sonho e a realidade.
- Fala à gente! Era sempre a Natália a começar, como no dia
das cerejas. Por mais que fizesse, nunca ele se atreveria a dar o primeiro
passo. Só quando a rapariga quebrava a distância é que o coitado se abria num
contentamento sem medida., tonto e novo como um cabrito. Mas nunca passava de
coisas vagas e enternecidas. As palavras concretas magoavam-lhe a boca.
- Ainda não lhe falaste em nada? - Indagava a Teodósia,
insárida.
- Não. Mas amanhã... - Ou quererás tu antes que eu lhe
diga... ? - Melhor fora! Valha-a Deus! Isso até era uma vergonha!
Lá conhecer os pontos de honra de um homem, conhecia-os ele.
A coragem é que não chegava à altura do entendimento.
Infelizmente, a vida não podia parar naquela lírica
indecisão. Os meses passavam, as folhas caíam, e outros renovos vinham povoar a
terra.
- O João Neca esperou-me ontem à entrada do povo... -
começou a Natália, à saída da missa.
- Ah, sim? E depois? - perguntou ele, a sentir o sangue
subir-lhe à cara.
- Pediu-me namoro... - deixou ela cair com melancolia.
Era justamente altura de lhe dizer tudo, que a não podia
tirar do pensamento, que só quando a levasse ao altar teria paz, que não seria
nada no mundo sem os seus olhos verdes ao lado. Mas ainda desta vez o ânimo lhe
faltou.
- Bem, tu é que vês... Ele não é mau rapaz... Rasgava-lhe
conscientemente o coração com semelhante aquiescência, porque tinha a certeza
que desde a primeira hora o amava também. A coragem é que não era capaz doutra
coisa.
- Eu queria lá um farçola daqueles! Estou muito bem assim...
Puras palavras de desespero. Tanto ela, que despeitada as
dizia, como ele, que culpado as provocara, sabiam que eram o fruto de uma
revolta impotente e destinada a morrer.
A pobre Teodósia é que lutava às claras. E dias depois já
estava a picar o filho:
- Sabes o que me disseram hoje na fonte? - Que a Natália tem
namoro com o João Neca... - respondeu, vencido.
- Nem mais. - Pois tem...
- Já sabias?! Então... e tu? Não a queres? Ou foi ela que te
deixou ?
- Eu sei lá o que foi... Dali em diante parecia viver de
alma viúva. E a alegria do rosto da rapariga cobriu-se também de um negro véu
de desilusão. Passavam um pelo outro e comiam-se com os olhos. Mas nem ele lhe
falava no seu amor, nem ela rasgava já a frágil teia de separação.
- Casam-se para a semana... - ia esclarecendo a Teodósia,
como um remorso.
- Já sei. - O padre leu hoje os banhos... - Pois leu... Era
uma resignação que quebrava a gente, e desarmava. E a velha não encontrava
outro alivio senão chorar.
- Morria por ti! - disse-lhe numa manhã, que podia ser de
felicidade para os três., e se transformara num pesadelo.
Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um
alvoroço de noivado, e só naquela casa a tristeza se aninhava sombria e
desamparada a um canto.
- Também eu gostava dela... Era outra vez Junho, as searas
aloiravam já, e nas cerdeiras, polpudas, rijas, as cerejas tomavam uma cor
avermelhada e levemente escarninha.
Miguel Torga
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