«S. Paulo»
S.Paulo escreve as Epístolas/ Valentin Boulogne
396- «S. PAULO»
[Excerto de «A Tentação de Existir]
Nunca o acusaremos o bastante por ter feito do cristianismo
uma religião deselegante, por nele ter introduzido as tradições mais detestáveis
do Antigo Testamento: a intolerância, a brutalidade, o provincianismo. Com que
indiscrição interfere em coisas que não lhe dizem respeito, de que nada
entende! As suas considerações sobre a virgindade, a abstinência e o casamento
são muito simplesmente de causar náuseas. Responsável pelos nossos
preconceitos em religião e moral, fixou as normas da estupidez e multiplicou
todas essas restrições que ainda hoje paralisam os nossos instintos.
Dos antigos profetas, não tem nem o lirismo nem o tom
elegíaco e cósmico, mas apenas o espírito sectário, e tudo aquilo que neles era
mau gosto, tagarelice, divagações destinadas aos cidadãos. Os costumes
interessam-no sobremaneira. Logo que começa a falar disso, vemo-lo vibrar de
maldade. Obcecado pela cidade, pela que quer destruir e pela que quer
edificar, dá menos atenção às relações entre o homem e Deus do que às dos
homens entre si. Examinemos de perto as famosas Epístolas: não descobriremos um
só momento de cansaço e de delicadeza, de recolhimento e de distinção; tudo
nelas é furor, ofegar, histeria de má qualidade, incompreensão perante o
conhecimento, perante a solidão do conhecimento. Intermediários por todo o
lado, laços de parentesco, um espírito de família: Pai, Mãe, Filhos, Anjos,
Santos; nem o menor vestígio de intelectualidade, de conceito definido, de
alguém que quer compreender. Pecados, recompensas, contabilidade dos
vícios e das virtudes. Uma religião sem interrogações: um deboche de antropomorfismo.
O Deus que esta religião nos propõe faz-me corar; desqualificá-lo constitui um
dever: no ponto em que se encontra, está, de qualquer maneira, perdido.
Nem Lao-Tse nem Buda se reclamam de um Ser identificável;
desprezando as manobras da fé, convidam-nos à meditação e, para que a meditação
não redunde em vazio, fixam-lhe um termo: o Tao ou o Nirvana. Lao-Tse e Buda
tinham uma outra ideia do homem.
Como poderemos meditar se temos de referir tudo a um indivíduo...
supremo? Com salmos, com orações, nada se procura, nada se descobre. É por
preguiça que personificamos a divindade que imploramos. Os Gregos despertaram
para a filosofia no momento em que os deuses começaram a parecer-lhes
insuficientes; o conceito começa onde o Olimpo acaba. Pensar é deixar de
venerar, é insurgir-se contra o mistério, proclamando a sua ruína.
Ao adoptar uma doutrina que lhe era estranha, o convertido
imagina ter dado um passo na direcção de si próprio quando se limita apenas a
escamotear as suas dificuldades. Para escapar à insegurança — o seu sentimento
dominante —, entrega-se à primeira causa que o acaso lhe proporciona. Uma vez
de posse da «verdade», vingar-se-á sobre os outros das suas antigas incertezas,
dos seus antigos medos. Foi o caso desse convertido típico, S. Paulo. Os seus
ares grandiloquentes dissimulavam mal uma ansiedade sobre a qual ele se
esforçou por triunfar sem o conseguir.
Como todos os neófitos, julgava que pela sua nova fé ia
mudar de natureza e vencer essas hesitações que tinha o cuidado de não referir
aos seus correspondentes ou ouvintes. O seu jogo já não logra enganar-nos. Mas
numerosos foram os espíritos que se deixaram enredar. Era, é certo, numa época
em que se buscava a «verdade», em que as pessoas não se interessavam pelos casos. Se,
em Atenas, o nosso apóstolo foi mal recebido, se deparou aí com um meio
refractário às suas elucubrações, é porque em Atenas ainda se discutia, e
o cepticismo, longe de abdicar, continuava a defender as suas posições. As
patranhas cristãs não podiam fazer carreira em Atenas; em compensação, seduziriam
Corinto, cidade duvidosa, rebelde à dialéctica.
A plebe quer ser sufocada por invectivas, ameaças e
revelações, por declarações estrondosas: gosta dos faladores. S. Paulo foi um
falador — o mais inspirado, o mais dotado, o mais hábil da antiguidade. Ainda
sentimos os ecos de todo o ruído que fez. Sabia subir ao palco e declamar as
suas iras. Não introduziu ele no mundo greco-romano um tom de feira? Os sábios
do seu tempo recomendavam o silêncio, a resignação, o abandono, coisas
impraticáveis; mais hábil, S. Paulo trouxe, pelo seu lado, receitas
aliciantes: das que salvam a canalha e desmoralizam os espíritos delicados. A
sua vingança sobre Atenas foi completa. Se tivesse triunfado na cidade, talvez
os seus ódios se tivessem moderado. Nunca um fracasso teve consequências tão
pesadas. E se somos pagãos mutilados, fulminados, crucificados, pagãos trespassados
por uma vulgaridade profunda, inesquecível, uma vulgaridade de dois mil anos, é
a esse fracasso que o devemos.
Um judeu não-judeu, um judeu pervertido, um traidor. Daí a
impressão de insinceridade que se desprende dos seus apelos, das suas
exortações, das suas violências. É suspeito: mostra-se demasiado convencido. Não
sabemos por onde lhe pegar, como defini-lo; colocado numa encruzilhada da
História, sofreu múltiplas influências. Depois de ter hesitado entre diversas
vias, acabou por escolher uma, a boa. Os seres da sua espécie jogam
pelo seguro: obcecados pela posteridade, pelo eco que os seus gestos
suscitarão, quando se sacrificam a uma causa é como vítimas eficazes.
Quando já não sei quem destacar, abro as Epístolas e em
breve me sinto descansado. Ali está o meu homem. Põe-me em transe, faz-me
tremer. Para o odiar de perto, como seu contemporâneo, faço tábua
rasa de vinte séculos, e sigo-o nas suas digressões; os seus sucessos desencorajam-me,
os suplícios que lhe infligem enchem-me de satisfação. Viro contra ele o
frenesim que ele me comunica: infelizmente não era assim que o Império agia!
Uma civilização apodrecida pactua com o seu mal, ama o vírus
que a corrói, deixa de se respeitar, permite que um S. Paulo circule... Fazendo-o,
confessa-se vencida, carunchosa, acabada. O cheiro da carne podre atrai e
excita os apóstolos, coveiros cheios de cobiça e de loquacidade.
Todo um mundo de magnificência e de luz cedeu perante a
agressividade desses «inimigos das Musas», desses loucos que ainda hoje nos
inspiram um pânico temperado pela aversão. O paganismo tratou-os com ironia, arma
inofensiva, demasiado nobre para vencer uma horda insensível às subtilezas. O
homem delicado que raciocina não pode enfrentar o beócio que reza. Preso às
alturas do desprezo e do sorriso, sucumbirá ao primeiro assalto, porque o
dinamismo, privilégio da escória, vem sempre de baixo.
Os horrores antigos eram mil vezes preferíveis aos horrores
cristãos. Esses cérebros febris, essas almas cheias de remorsos estranhos,
esses demolidores lançados contra o sonho de amenidade de uma sociedade
tardia, maltratariam as consciências até as transformarem em «corações». O mais
competente de todos estes assaltantes aplicou-se à sua tarefa com uma
perversidade que, de início, assustou os espíritos, mas que iria depois
marcá-los, submetê-los e associá-los a uma empresa inominável.
O crepúsculo greco-romano merecia, contudo, outro inimigo,
outra promessa, outra religião. Como poderemos admitir a sombra de um progresso
quando pensamos que os fracos cristãos conseguiram sem dificuldade sufocar o
estoicismo? Se este último tivesse conseguido propagar-se, apoderar-se do
mundo, o homem teria resultado, ou quase. A resignação, tornada
obrigatória, ter-nos-ia ensinado a suportar as nossas desgraças com dignidade,
a fazer calar as nossas vozes, a encarar friamente o nosso nada. Teria
desaparecido a poesia dos nossos costumes? Ao diabo, a poesia! Em troca,
teríamos adquirido a faculdade de suportar as nossas provações sem um gemido.
Não acusaríamos ninguém, não condescenderíamos nem com a tristeza, nem com a
alegria, nem com o remorso; reduziríamos as nossas relações com o universo a um
jogo harmonioso de derrotas; viveríamos como condenados serenos; não
imploraríamos nada à divindade, quando muito far-lhe-íamos uma advertência...
Não era possível. Atacado por todos os lados, o estoicismo, fiel aos seus
princípios, teve a elegância de morrer sem se debater. Uma religião
instala-se sobre as ruínas de uma sabedoria: as manobras da primeira não
convêm de maneira alguma à segunda. Os homens hão-de preferir sempre
desesperar de joelhos do que de pé. São a sua cobardia e a sua fadiga, a sua
incapacidade de se elevarem até à ausência de consolações, disso se orgulhando,
que neles aspiram à salvação. Quem morre escoltado pelas esperanças que o
fizeram viver cobre-se de desonra. Que as multidões e os autores de discursos
rastejem em direcção ao «ideal» e nele se afundem! Mais do que um dado, a
solidão é uma missão: elevar-se até ela e assumi-la é renunciar a essa baixeza
que sustenta o sucesso de qualquer empreendimento, religioso ou não.
Recapitulemos a história das ideias, dos gestos, das atitudes: veremos que o
futuro foi sempre cúmplice da turba. Não se prega em nome de Marco
Aurélio: como este se dirigia apenas a si próprio, não teve nem discípulos nem
sectários; e contudo, não pararam ainda de construir-se templos onde certas
Epístolas são citadas até à saciedade. Enquanto assim for, perseguirei com o
meu rancor àquele que tão astuciosamente soube interessar-nos pelos seus
tormentos.
E.M. Cioran
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