«História da Baleia»
Jonas saindo da Baleia/ Jan Bruegel
398- «HISTÓRIA DA BALEIA»
Há muito, muito, muito tempo, vivia no mar a baleia, que
comia peixes. Ainda ela, nesse tempo, podia comer peixes. Comia sardinhas e
tainhas, gorazes e roazes, bugios e safios, pescadas e douradas, bacalhaus e
carapaus. Todos os peixes que ia encontrando deitava-lhes a boca, - ão! Por
fim, só havia no mar um salmonete vermelhete, que nadava sempre atrás da orelha
esquerda da baleia, para ela lhe não fazer mal. Um dia, a baleia pôs-se a
pensar muito séria, e disse assim :
- Tenho fome !
E o salmonete vermelhete, com a sua voz muito agudita, disse
à baleia :
- Nobre e generoso cetáceo : já experimentou comer homens?
- Não - respondeu a baleia. - A que sabe? como é?
- Bom, mas traquinas - respondeu o salmonete vermelhete.
- Então, vai-me buscar três dúzias deles - ordenou a baleia.
- Basta um de cada vez - disse o salmonete vermelhete. - Se
for à latitude 60 graus norte e longitude 40 graus oeste (isto, amigos, são
umas palavras mágicas que o salmonete lá sabia) encontrará uma jangada feita de
tábuas, e sobre a jangada um marinheiro náufrago de calças de ganga azul, uma
faca de ponta aguda, e suspensórios encarnados (não se esqueçam dos
suspensórios!). O marinheiro, devo dizer-lhe, é arguto, astuto, e resoluto.
A baleia, então, foi aonde lhe disse o salmonete vermelhete,
e encontrou a jangada e o marinheiro. Aproximou-se, abriu a bocarra imensa, e
engoliu a jangada e o marinheiro, com as calças de ganga azul, com a faca de
ponta aguda e com os suspensórios encarnados (nunca se esqueçam dos
suspensórios!). E assim a baleia arrecadou tudo na despensa escura, quentinha e
fofazinha, que tinha lá dentro do seu corpanzão. E como gostou, deu três
estalos com a língua e três voltas sobre a cauda, levantando muita espuma.
O marinheiro (que era arguto, astuto, e resoluto) mal se viu
dentro da baleia. na despensa escura, quentinha e fofazinha, pulou, saltou,
rebolou, cambaleou, espinoteou, dançou, sapateou, fandangueou, esperneou,
gritou, berrou, cantou, estrondeou tanto, tanto, tanto, que a baleia se sentiu
com enjoos, engulhos e soluços (já se esqueceram dos suspensórios?). E disse a
baleia ao salmonete vermelhete :
- O teu homem é muito traquinas, e dá-me engulhos. Que
hei-de eu fazer?
- Diga-lhe que saia cá para fora - respondeu o salmonete
vermelhete.
E a baleia gritou pela garganta abaixo:
- Saia cá para fora, homenzinho, e veja se tem juízo!
- Isso é que eu não saio- respondeu o homem. - Leve-me
primeiro para a minha terra, e depois veremos o que se poderá fazer.
E pôs-se outra vez a saltar, a pular, a espinotear e a rebolar.
- O melhor é levá-lo para casa- aconselhou o salmonete
vermelhete. - Eu já tinha prevenido a senhora baleia de que o marinheiro era
arguto, astuto e resoluto.
E a baleia nadou, nadou, nadou, dando à cauda e às
barbatanas, mas sempre com soluços e muito enjoada. Quando avistou a terra do
marinheiro, nadou para a praia, pôs a boca sobre a areia, abriu-a muito, e
disse:
- Cá chegámos à sua terra!
O marinheiro, que era na verdade arguto, astuto e resoluto,
tinha durante a viagem puxado da sua faca de ponta aguda, e cortado as tábuas
da jangada em fasquiazinhas muito estreitas, que ligou muito bem com tiras dos
suspensórios (bem lhes dizia eu que não se esquecessem dos suspensórios!) e fez
com elas uma grade que empurrou, ao sair, contra a garganta da baleia. E,
deixando a grade bem presa na garganta da baleia, saltou para terra e foi ter
com a mãe, com a qual viveu muito contente.
A baleia foi-se embora também muito contente, assim como o
salmonete vermelhete; mas a grade é que nunca mais saiu da garganta da baleia.
E por isso é que a baleia nunca mais pôde comer homens, nem meninos, nem peixes
- nem sardinhas nem tainhas, nem gorazes nem roazes, nem bugios nem safios, nem
pescadas nem douradas -, porque os peixes não podem passar pelas grades da
garganta, mas só bichinhos pequeninos, como, por exemplo, as pulgas-do-mar.
Pouco depois, o marinheiro casou e viveu muito feliz; tinha
em casa as calças de ganga azul e a navalha de ponta aguda; mas não tinha os
suspensórios, porque esses ficaram a atar a grade, muito apertada. que só deixa
passar bichinhos pequeninos - como as pulguinhas-do-mar - na garganta da
baleia.
António Sérgio
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