«Os Netos»
Avô e Netos/ James Hardy Jr.
382- «OS NETOS»
Andavam todos pasmados, a falar baixinho pelos cantos.
O d. Afonso parecia outro!
Se fosse um Afonso qualquer!... mas o dom, o quarto, o do
Salado!... Quem jamais o vira assim de olhar tão doce na sombra do supercílio
carregado, de riso tão lhano sob as enormes barbas patriarcais, honradas entre
as mais honradas dos afonsinos?
O Coelho, que havia muito, andava tramando o crime, até
disse baixinho ao Pacheco: — “Ali há coisa!” O Pacheco já a farejara, olha
quem! E entretanto, o d. Afonso, todo fora dos eixos costumados, dizia graças,
quando passava alguma dama a rojar sedas na peugada da linda Inês.
Ia seu caminho o drama tenebroso. Tanto haviam feito, que já
tinham escangalhado o sossego da que depois de morta foi rainha. E o cetro,
sobre que tão famigerados heróicos havia de bordar o dr. Ferreira, parecia
pesar nas mãos do monarca menos do que se fora de pequisbeque, talvez tanto
como de papelão dourado.
É que naquela noite...
O homem tinha um fraco: pelava-se pela canja!
Ele em pessoa comprara a galinha, uma ave amarela, que era
uma beleza, gorda anafada... Depois do muito regatear, e por ser a ele, d.
Afonso, é que a soloia a vendera por 620! Um rico pedaço do touu1nh, um bom
naco de presunto, o belo chouriço, cheirinhos, arroz da melhor tenda... Ora
adeus! Um dia não são dias. Aquela noite de Natal havia de ser falada!
E, por debaixo dos longos bigodes brancos, brancos de neve,
El-rei lambia os beiços.
Chovia a potes.
O drama terrível, a mais calamitosa tragédia da história
pátria, ia-se pouco a pouco desenrolando.
Inês lamentava-se. Os horríficos algozes haviam-na trazido
ante o rei. Eram três judeus de calvário de Semana Santa, muito capazes de dar
sete pesadelos a quem não estivesse prevenido. Muito cabelo, muita sobrancelha,
muita barba, vozes de tiranos. Ela erguia para o céu cristalino os olhos
piedosos, atentava nos meninos cheios de sono, falava ao avô cruel nas brutas
feras e nas aves agrestes, na mãe de Nino e nos irmãos que Roma edificaram;
queria ir fosse lá para onde fosse, para a Citia fria ou para a Líbia ardente,
contanto que a tirassem dali. Era de partir os corações! Mas aqueles patifes,
de punhais desembainhados, sanhudos, faziam esgares!
E a desditosa amante do príncipe, entre soluços e lágrimas,
pensava: — “Que demônio tem hoje o d. Afonso?
O rei só via a canja, os olhinhos da gordura, o arroz muito
branco... E arregalava o olho e abria a venta!
Ah! que delicioso quadro! Que lhe importavam a linda Inês de
rojo a seus pés, as iras do filho apaixonado, a política do reino, as Espanhas,
os Castros?
Uma trapeira, que, toda envolta em arroz de telhado, era
como um ramalhete, numa rua estreita, escura, tortuosa, para lá lhe fugia o
pensamento. Em volta dela cantavam pardais todas as manhãs, e o sol, mal
nascia, pintava-lhe os vidros como se fossem pedras preciosas, rutilantes.
Tanta paz lá dentro, tanto riso de crianças!
Noite de Natal muito fria. Ah! como chovia lã fora! Cantava
a água, caindo em jorros das biqueiras sobre as pedras das calçadas. Como
estavam lamacentas as ruas, cheias de poças! O vento do sudoeste arrastava pelo
céu as nuvens desgrenhadas, e chovia sem descanso.
Lá dentro da trapeira, tanta luz, tanta alegria!
Noite de Natal! A toalha resplandecia muito branca sobre a
velha mesa herdada dos avós, um nadinha coxa e remendada. Era um velho traste
amigo, naquela noite todo enfeitado para a festa. O candeeiro, entornando sobre
a alvura do linho um círculo de luz aconchegador, fazia faiscar as lâminas das
facas, estriava com fogo os cabos muito limpos das colheres. O pão, há pouco
vindo do forno, ainda fumegava embrulhado na flanela, e seis guardanapos
engomados ostentavam formas caprichosas, em cima dos pratos: pombinhos, leques,
romãs abertas.
Lá dentro, na cozinha, riam as crianças: A mais pequenina,
uma gorducha rosada e muito loira, fechava os olhos cansadinhos de sono,
teimando em não querer deitar-se, que havia com as mais velhas de assistir à
grande festa.
E a panela a chiar e o vinho a aquecer e o quebrar das
nozes!
Vá lá um homem ralar-se com a política do reino, ter
consciência de sua altíssima missão, compreender o direito divino, recalcar no
coração a piedade e ser cruel contra o próprio filho meio louco de amor e que a
dor tornaria completamente louco, contra os infantes seus netos, contra a
formosa fidalga chorosa, que deixava espalhar pelos ombros os fartos cabelos
pintados de loiro!
— Pois sim, cantem — pensava ele.
E respondia tão distraído, tão fora do sentimento, que
todos, pasmados, diziam:
— O d. Afonso... ali há coisa!
Corriam-lhe pelas faces uns arrepiozinhos, impaciências
perceptíveis sob as enormes barbas todas brancas, fazendo-lhe tremer as asas do
nariz e os cantinhos das fartas sobrancelhas.
O filho, o d. Pedro, com voz de trovão, arrancava do peito
as últimas exclamações e afastava-se a largos passos para ir pegar em armas. A
corte, atônita, aflita, corria para a vasta janela rendilhada para ver o
desgraçado amante atravessar os pátios, chamar os seus, com eles dispor a
vingança. Era então que o velho herói do Salado, desgraçadinho, cheio de
lágrimas na voz, com o coração dilacerado, diante do corpo inanimado da linda
Inês, havia de soluçar altíssimas filosofias sobre a vaidade das vaidades, o
peso daquela coroa sobre as cãs, daquele cetro nas mãos decrépitas.
— A canja, a canja! — pensava ele.
E ainda o eco murmurava os últimos gemidos daquele diabo de
tragédia, e já o d. Afonso galgava a quatro e quatro os degraus da escada, sem
coroa, sem cetro, sem barbas, respondendo ao contra-regra, que o chamava para
ir agradecer os aplausos da claque:
— Vão para o diabo!
E, meia hora depois, que alegria!
Quando chegou a casa, em volta da mesa, a filha, o genro, os
três netinhos, todos a cantarem o hino da carta:
— Tchim! Tchim!... Taratatchim! Taratatchim! Que bem que
cheirava a canja!
Aquela noite de Natal havia de ser falada!
D. João da Câmara
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