quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

OUTROS CONTOS

«Mangondé», por Allman Ndyoko.
«Mangondé»
Maraca Makonde

414- «MANGONDÉ»

Um bando de aves em vôo apressado cortaram a aldeia em diagonal enquanto andorinhas em seu estilo característico batiam as asas em franca liberdade no céu claro, fresco e azulado de Mahunda.

Kabwela, um homem afável da linhagem vamatambwe, alto, forte, de rosto tatuado e dentes afiados conforme mandava a tradição, atravessou o limiar da povoação empunhando uma catana na mão e levando nas costas um arco e flechas e seguiu um carreiro serpenteante que conduzia à floresta adentro. Andou no meio da floresta cerrada e tenebrosa ouvindo os pássaros que lhe cantavam serviçalmente naquela manhã bela e boa para um passeio no bosque. Com a barba desleixada, descalço, palmas ásperas e um andar na floresta experiente, Kabwela marchava firme com a fisionomia denunciando um homem maduro, vivido e que deleitara e usara abusivamente os prazeres da vida.

Entretanto, aproximou-se a uma moita bem tenebrosa e logo deteve-se com pasmo. Recuou dois passos e voltou a deter-se fazendo bater as pálpebras vezes sem conta. Passou a mão aos olhos, esfregou-os rapidamente e continuou olhando fixamente na moita. Em frente dos seus olhos uma figura humana envolta em pano branco, semelhante ao que se envolve aos cadáveres, lhe aguardava cabisbaixa e em silêncio tumular. O sujeito tinha a face pálida, olhos esbugalhados e um olhar apavorado que denunciava uma excessiva insatisfação. Kabwela olhou-o fixamente e no fim, pareceu-lhe familiar. Matutou insistentemente procurando se lembrar do homem. Rapidamente veio-lhe a cabeça. Deitou no chão a catana, o arco e as flechas que trazia e tremendo de medo no meio da floresta fugiu a sete pés com as mãos sobre a cabeça e gritando aos berros:

- Acudam-me, acudam-me, acudam-me...

De repente, a figura em volta em pano branco seguiu o gesto correndo atrás de Kabwela de forma incrível e sobre-humana. Pouco depois, Kabwela tropeçou um tronco escondido e enterrado no capim alto que predominava a floresta e logo o sujeito alcançou-o. Apeado em sua frente, o sujeito olhou-o assustadoramente com olhos ofuscantes e lhe rodeou com ar ameçador. Parou levando a mão às costas e, com uma rapidez indiscriptível, começou a bater Kabwela com uma haste delgada e flexível que parecia de uma árvore. Kabwela gritou forte e profundamente provocando um eco na imensidão da floresta, que se propagou imediatamente chegando a ouvir-se nas palhotas iniciais da povoação. No entanto, o sujeito bateu-lhe forte e feio e logo as lágrimas não tardaram a saltarem-lhe dos olhos. Desesperadamente tentou erguer-se para se escapulir, mas o homem de pano branco impediu-o deixando-lhe cair no tapete verdejante da floresta. Passado um momento, o agressor parou. Uma tempestade forte fustigou, repentinamente, a floresta e, precisamente, no ponto onde Kabwela lutava em vão para se pôr em fuga. Nesse instante, o agressor desapareceu misteriosamente entre nuvens densas e negras que, inexplicavelmente, formaram-se naquele ponto do bosque. Nisto, Kabwela ergueu-se com a cabeça mergulhada entre os braços. Soluçando fez uma ronda com os olhos em volta da floresta e temeroso fugiu, novamente, a sete pés fazendo caretas de dor.

Sem olhar para atrás, Kabwela, correu incansavelmente como um antílope e depois de muito tempo e de uma fuga desorientada desembocou na aldeia reiniciando os berros como uma criança.

A povoação parou e os aldeões curiosos seguiram o infeliz cerimoniosamente até a sua palhota, onde no meio do quintal deixou-se cair chorando fortemente esgravatando a terra e, de vez em quando, cerrando os punhos cheios de areia. Kabwela chorou durante muito tempo lacrimejando copiosamente e depois calou-se. Dois anciãos saíram no meio dos curiosos que o assistiam e ajudaram-no a erguer-se do chão. Depois, banhado de areia, encaminharam-no à palhota, onde após uns breves instantes de silêncio, os anciãos quiseram saber:

- O que sucedeu?

Kabwela calou-se. Passado algum momento suspirou profundamente, mergulhou a cabeça nas mãos e mentalmente começou a reviver o que lhe sucedera na floresta. No fim, soluçou uma vez e tremendo, respondeu:

- Ia andando a caminho da floresta, onde tencionava visitar as minhas armadilhas e arranjar algumas estacas para concertar o celeiro, quando, de súbito, numa moita tenebrosa vi um vulto envolto em pano branco. Parei, olhei fixamente e vi que era alguém que conhecia e que já não está no mundo dos vivos. Fiquei assustado e fugi. – Kabwela voltou a chorar fortemente limpando depois com a costa da mão um fio de ranho que lhe escorria pela narina abaixo. De seguida, calou-se e voltou ao ponto onde havia interrompido. – A pessoa perseguiu-me e junto de um tronco cai...

- É um mangonde. – Concluiu um dos anciãos. – É preciso sadaca para que não volte a reaparecer-lhe.

- Ele está aborrecido com alguma coisa. – Disse o outro ancião. – E para saber o que é será preciso consultar um wihyango.

- Não é preciso consultar a ninguém. – Disse Kabwela triste. – Ele é meu avô que não cheguei de conhecer e segundo os relatos da minha mãe, ele faleceu na floresta de kundonde, presumivelmente, devorado por leões quando voltava a povoação. Uma vez que não se teve certeza desse acontecimento, ninguém fez matanga. Quando hoje me batia, o avô fez referência a este assunto e advertiu-me que caso não fizesse nada algo fatal me sucederá.

- Então, faça a cerimónia o mais breve possível. – Disse um dos anciãos. – Os mangondes não mentem e podem matar.

- Farei o mais breve possível para que o avô descanse em paz. – Disse Kabwela aterrorizado.

- Estas situações são frequentes e as pessoas que normalmente fazem isto são as que lhe negamos a cerimónia relativa à sua morte. Quando isto acontece eles vagueiam aqui na terra e não são recebido no mundo dos ancestrais. – Disse alguém entre os dois anciãos.

- Então, quer dizer que matanga constitui para os mortos um cartão de entrada no mundo dos antepassados. – Concluiu Kabwela juntando os braços no peito.

- É sim um cartão muito importante para os mortos entrarem no mundo dos antepassados.– Respondeu uns dos anciãos sentado à beira da cama dentro da palhota iluminada por uma lareira que ardia lentamente no centro exalando uma densa fumaça branca. – E para provar isso, a agressão feita hoje basta para ilustrar a importância que a cerimónia tem para as pessoas que passam para o outro lado do mundo.

Entretanto, os anciãos deixaram a palhota e foram às suas vidas, um gesto também imitado pelos curiosos que cercava o quintal do Kabwela.

Dias depois, Kabwela fez matanga tendo , em memória ao seu avô, dado, no seu quintal, uma festa de invejar, onde os aldeões de Mahunda evocaram os espíritos dos antepassados de Kabwela, comeram, beberam e dançaram ao som secular dos tambores. Assim, após aquela festa pomposa à maneira makonde, Kabwela jamais voltou a avistar algo semelhante com o que havia visto na floresta naquela manhã clara, fresca e fatídica, confirmando-se assim o pensamento popular sobre a questão...

Allman Ndyoko

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