414- «MANGONDÉ»
Um bando de aves em vôo apressado cortaram a aldeia em
diagonal enquanto andorinhas em seu estilo característico batiam as asas em
franca liberdade no céu claro, fresco e azulado de Mahunda.
Kabwela, um homem afável da linhagem vamatambwe, alto,
forte, de rosto tatuado e dentes afiados conforme mandava a tradição,
atravessou o limiar da povoação empunhando uma catana na mão e levando nas
costas um arco e flechas e seguiu um carreiro serpenteante que conduzia à
floresta adentro. Andou no meio da floresta cerrada e tenebrosa ouvindo os
pássaros que lhe cantavam serviçalmente naquela manhã bela e boa para um
passeio no bosque. Com a barba desleixada, descalço, palmas ásperas e um andar
na floresta experiente, Kabwela marchava firme com a fisionomia denunciando um
homem maduro, vivido e que deleitara e usara abusivamente os prazeres da vida.
Entretanto, aproximou-se a uma moita bem tenebrosa e logo
deteve-se com pasmo. Recuou dois passos e voltou a deter-se fazendo bater as
pálpebras vezes sem conta. Passou a mão aos olhos, esfregou-os rapidamente e
continuou olhando fixamente na moita. Em frente dos seus olhos uma figura
humana envolta em pano branco, semelhante ao que se envolve aos cadáveres, lhe aguardava
cabisbaixa e em silêncio tumular. O sujeito tinha a face pálida, olhos
esbugalhados e um olhar apavorado que denunciava uma excessiva insatisfação.
Kabwela olhou-o fixamente e no fim, pareceu-lhe familiar. Matutou
insistentemente procurando se lembrar do homem. Rapidamente veio-lhe a cabeça.
Deitou no chão a catana, o arco e as flechas que trazia e tremendo de medo no
meio da floresta fugiu a sete pés com as mãos sobre a cabeça e gritando aos
berros:
- Acudam-me, acudam-me, acudam-me...
De repente, a figura em volta em pano branco seguiu o gesto
correndo atrás de Kabwela de forma incrível e sobre-humana. Pouco depois,
Kabwela tropeçou um tronco escondido e enterrado no capim alto que predominava
a floresta e logo o sujeito alcançou-o. Apeado em sua frente, o sujeito olhou-o
assustadoramente com olhos ofuscantes e lhe rodeou com ar ameçador. Parou
levando a mão às costas e, com uma rapidez indiscriptível, começou a bater
Kabwela com uma haste delgada e flexível que parecia de uma árvore. Kabwela gritou
forte e profundamente provocando um eco na imensidão da floresta, que se
propagou imediatamente chegando a ouvir-se nas palhotas iniciais da povoação.
No entanto, o sujeito bateu-lhe forte e feio e logo as lágrimas não tardaram a
saltarem-lhe dos olhos. Desesperadamente tentou erguer-se para se escapulir,
mas o homem de pano branco impediu-o deixando-lhe cair no tapete verdejante da
floresta. Passado um momento, o agressor parou. Uma tempestade forte fustigou,
repentinamente, a floresta e, precisamente, no ponto onde Kabwela lutava em vão
para se pôr em fuga. Nesse instante, o agressor desapareceu misteriosamente
entre nuvens densas e negras que, inexplicavelmente, formaram-se naquele ponto
do bosque. Nisto, Kabwela ergueu-se com a cabeça mergulhada entre os braços.
Soluçando fez uma ronda com os olhos em volta da floresta e temeroso fugiu,
novamente, a sete pés fazendo caretas de dor.
Sem olhar para atrás, Kabwela, correu incansavelmente como
um antílope e depois de muito tempo e de uma fuga desorientada desembocou na
aldeia reiniciando os berros como uma criança.
A povoação parou e os aldeões curiosos seguiram o infeliz
cerimoniosamente até a sua palhota, onde no meio do quintal deixou-se cair
chorando fortemente esgravatando a terra e, de vez em quando, cerrando os
punhos cheios de areia. Kabwela chorou durante muito tempo lacrimejando
copiosamente e depois calou-se. Dois anciãos saíram no meio dos curiosos que o
assistiam e ajudaram-no a erguer-se do chão. Depois, banhado de areia,
encaminharam-no à palhota, onde após uns breves instantes de silêncio, os
anciãos quiseram saber:
- O que sucedeu?
Kabwela calou-se. Passado algum momento suspirou
profundamente, mergulhou a cabeça nas mãos e mentalmente começou a reviver o
que lhe sucedera na floresta. No fim, soluçou uma vez e tremendo, respondeu:
- Ia andando a caminho da floresta, onde tencionava visitar
as minhas armadilhas e arranjar algumas estacas para concertar o celeiro,
quando, de súbito, numa moita tenebrosa vi um vulto envolto em pano branco.
Parei, olhei fixamente e vi que era alguém que conhecia e que já não está no
mundo dos vivos. Fiquei assustado e fugi. – Kabwela voltou a chorar fortemente
limpando depois com a costa da mão um fio de ranho que lhe escorria pela narina
abaixo. De seguida, calou-se e voltou ao ponto onde havia interrompido. – A
pessoa perseguiu-me e junto de um tronco cai...
- É um mangonde. – Concluiu um dos anciãos. – É preciso
sadaca para que não volte a reaparecer-lhe.
- Ele está aborrecido com alguma coisa. – Disse o outro
ancião. – E para saber o que é será preciso consultar um wihyango.
- Não é preciso consultar a ninguém. – Disse Kabwela triste.
– Ele é meu avô que não cheguei de conhecer e segundo os relatos da minha mãe,
ele faleceu na floresta de kundonde, presumivelmente, devorado por leões quando
voltava a povoação. Uma vez que não se teve certeza desse acontecimento,
ninguém fez matanga. Quando hoje me batia, o avô fez referência a este assunto
e advertiu-me que caso não fizesse nada algo fatal me sucederá.
- Então, faça a cerimónia o mais breve possível. – Disse um
dos anciãos. – Os mangondes não mentem e podem matar.
- Farei o mais breve possível para que o avô descanse em
paz. – Disse Kabwela aterrorizado.
- Estas situações são frequentes e as pessoas que
normalmente fazem isto são as que lhe negamos a cerimónia relativa à sua morte.
Quando isto acontece eles vagueiam aqui na terra e não são recebido no mundo
dos ancestrais. – Disse alguém entre os dois anciãos.
- Então, quer dizer que matanga constitui para os mortos um
cartão de entrada no mundo dos antepassados. – Concluiu Kabwela juntando os
braços no peito.
- É sim um cartão muito importante para os mortos entrarem
no mundo dos antepassados.– Respondeu uns dos anciãos sentado à beira da cama
dentro da palhota iluminada por uma lareira que ardia lentamente no centro
exalando uma densa fumaça branca. – E para provar isso, a agressão feita hoje
basta para ilustrar a importância que a cerimónia tem para as pessoas que
passam para o outro lado do mundo.
Entretanto, os anciãos deixaram a palhota e foram às suas
vidas, um gesto também imitado pelos curiosos que cercava o quintal do Kabwela.
Dias depois, Kabwela fez matanga tendo , em memória ao seu
avô, dado, no seu quintal, uma festa de invejar, onde os aldeões de Mahunda evocaram
os espíritos dos antepassados de Kabwela, comeram, beberam e dançaram ao som
secular dos tambores. Assim, após aquela festa pomposa à maneira makonde,
Kabwela jamais voltou a avistar algo semelhante com o que havia visto na
floresta naquela manhã clara, fresca e fatídica, confirmando-se assim o
pensamento popular sobre a questão...
Allman Ndyoko
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