«A Máscara»
Conto de Sérgio Rodrigues
418- «A MÁSCARA»
Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua
boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além
disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara
negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio
século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste,
a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses
olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior.
Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô,
sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira
que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de
arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de
tomar chá com torrada ele tomou para ti, não, imagine se vai tocar. Agora é
diferente, pior, melhor, depende. Por exemplo, quando você casar, duvido que
aguente o que eu aguentei. Não aguenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse
ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido um dia sair por
aí com um canivete no cinto e um pandeiro na mão, sossega leão e tal, eu acho
que você pode até aceitar, mas conhecendo você como eu conheço, eu sei que mal
a porta bateu você vai sair também, você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira,
lalaiá, lalaiá.
Sossega leoa – vai ou não vai? Pois eu acho que está
certíssimo, querida, nós é que éramos bobas no meu tempo, eu era. Engolia, aguentava,
chorava no travesseiro, noite em cima de noite perdendo o viço. Uma mulher
guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, cheiro de naftalina, ih,
estou melosa, estou dramática, mas era assim. Não admira que os olhinhos fossem
ficando merencórios, que o marido perdesse o interesse e procurasse cada vez
mais passatempos, depois vinha cair na cama sem tirar nem o sapato. O seu avô,
por exemplo: um homem bom, trabalhador, mas um patriarcão de antigamente, acho
que um dos últimos. Pisada firme, vozeirão, chicote no cinto, chicote é maneira
de dizer, que no Rio de 1950 ninguém usava chicote, mas você entende. Sua mãe
não era nascida ainda, os outros quatro sim, aquela escadinha, e foi aí que ele
me prometeu. O baile de máscaras do sábado de carnaval no casarão da Glorinha
Pissaraçuba na Praia do Flamengo – não tinha programa mais cintilante, jóia
social mais cobiçada naquele tempo. Era diferente demais, melhor, pior, eu não
disse?
Melhor, Vi, nesse caso era melhor porque nós íamos pela primeira vez no
baile da Glorinha Pissaraçuba, ah, você tinha que ver a minha felicidade! A
máscara veneziana eu comprei na Rua do Ouvidor para a ocasião, não foi barata,
negra porque assim ficava mais discreto, mais digno, seu avô aconselhou.
Aconselhou? Essa é boa, aconselhou nada, mandou, pois é. O vestido ia ser um
verde brilhoso de festa que já começava a encardir no armário, mandei tirar,
lavar, quarar, engomar, chegou o dia e eu fui fazer o cabelo, as crianças
excitadas só de ver a minha felicidade, mamãe vai sambar, vai sambar, sambar, e
quando chegou a hora, Vi – sambei, justamente. Seu avô ligou da rua dizendo que
a gente não ia mais no baile de máscaras, imprevistos, ele falou, contratempos,
uma palavra assim. Eu sabia o tipo de contratempo que ele gostava, aquele que o
cabelo não nega mas em compensação a cor não pega, feito dizia o Lamartine. Seu
avô não era fácil e a gente era boba demais, triste e amargurada, não tinha
essa sabedoria das mulheres de hoje, não tinha o salve o prazer, salve o
prazer. Me tranquei no quarto aquele sábado, os olhinhos merencórios dessa
máscara negra aí, essa mesma, ficaram me olhando em cima da cama um tempão. Foi
a Conceição que pôs as crianças para dormir, apagou a casa toda, você não teve
tempo de conhecer a Conceição, até hoje eu sinto saudade. Ela cuidou de tudo
enquanto eu ficava sentada na cama de vestido verde e laquê armado ouvindo as
risadas, gritinhos, gente batendo na lata, os barulhos todos de carnaval que
você conhece, isso não mudou tanto, ainda é assim. Eu nunca fui de folia e nem
podia ser, sempre fui certinha, e quando cheguei na esquina de máscara e
vestido verde e vi um grupo de clóvis me olhando do outro lado da rua, me veio
um pânico doido, quase dei meia volta. Nem sei como continuei andando, marcando
o passo com o meu coração, acho que eu corria. Não lembro de ter entrado no
Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia
que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora,
sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho
enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá
embaixo, reconheci a Niemeyer. Quem é você, diga logo que eu quero saber, ele
me disse que se chamava Jorge, depois Álvaro, mais tarde Toninho, e com o céu
começando a clarear já tinha virado Camilo, Ciro, Ismael. Eu também não
pronunciei o nosso nome, Vi, e a máscara negra nariguda eu só tirei enquanto a
escuridão nos protegia, o pierrô não soube que eu me chamava Elvira. Mas nunca
vou esquecer os olhos verdes dele, aqueles não tinham nada de merencórios, eram
da cor do mar de São Conrado quando amanhece num domingo de carnaval –
idênticos aos que me olham agora da sua cara espantada, Vi, isso também não
mudou, e no fim daquele ano sua mãe nasceu.
Sérgio Rodrigues
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