«O Derradeiro Eclipse»
Conto de Mia Couto
451- «O DERRADEIRO ECLIPSE
Justinho Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. Lastimagro, cancromido, ele para se enxergar precisava procurar-se por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o padre o avisou à saída da missa:
- “Seja prestável na atenção, Justinho: sua alma é como um
fumo que não tem lugar onde caiba”.
Raios picassem o padre que nunca falava direito. O que o
sacerdote sabia era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa.
Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a esposa mais
desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem objecto. Em véspera
de viagem, a suspeição do marido se agravava. Desta vez, um longo serviço de
visitações o vai obrigar a geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a
notícia:
- “Quanto tempo você me vai sozinhar?”
Um mês. A mulher contorce o bâton, abana as mechas. Até uma
lágrima lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante tanto
inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem, tão novo, guelra
tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de fidelidade? Na véspera de
partir, o marido se decidiu certificar em garantia de lealdade. Primeiro se
dirigiu à Igreja e solicitou socorro do padre português. O religioso torce as
mãos, reticente e, como era hábito, barateou filosofia:
- “Bem, não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja
duas...
- “Duas quê?
- “Duas pernas, ora essa”.
E prosseguiu divaguando, água em líquidos carreiros.
Justinho esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo:
vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas não, o padre
ondulava a testa de suposições.
- “Não sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?
- “Explique-se melhor, senhor padre.
- “Quer que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão
está mais limpo não é em casa de mortos?”
Justinho não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja.
Ainda se afastava e a voz irada do padre se faz ouvir:
- “Já sei para onde vais, criaturazita. Vais ter com o
feiticeiro! Mas verás o que os meus poderes, aliás os poderes divinos, irão
fazer com esse bruxo tropical!”
Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou
passo no caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater
nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não pode ter
mais que uma crença?
- “Isso não posso. Vontade de mulher está acima dos meus
poderes. Posso, sim, destinar castigo nos abusadores.
- “E como?
- “Hei-de tratar sua casa”.
E foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada
da residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de sofrer
muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na consciência:
- “Eles... eles irão morrer?”
O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e
gases, tudo inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos
serviços e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da
despedida:
- “Você, antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que
disse de mim?”
Justinho subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a
suas competências. O feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:
- “Esse padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a
história da galinha que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não
usar?”
Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais
que ele pretende. Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada.
Vestido do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do
marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o decote. Acera,
toda ela, está às ordens da saudade dele. Se engolfinham, enredando pernas nos suspiros,
confundindo lábios e suores, vidas e corpos.
Cumpridos os compridos amores Justinho se estira na cama, consolado. Fecha os olhos, menino após o seio. Depois, olha para cima e é fulminado por uma visão: dois homens flutuam de encontro ao tecto. Estão redondos, insuflados como balões.
- “Mulher quem é aquilo?
- “Que aquilo?”
Levanta-se em gesto de lamina e se espanta ainda mais ao
reconhecer os desditosos ditos. E quem eram? O padre e o feiticeiro. Esses
mesmos a que Justinho confiara a guarda de sua esposa. Esses mesmos estavam ali
perspregados no tecto.
- “Vocês, logo vocês?
- “Marido, está falar com quem?”
Gaguejadiço o marido aponta o tecto. A mulher acredita que
ele está em ataque de religiosidade, aspirando proximidades com o céu. Justinho
insanou-se, epiléctrico?
Acera ainda correu atrás do tresloucado marido. Mas o homem, de venta peluda,
se eclipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com testemunhas. Fez introduzir
uns tantos no quarto e apontou os autores do flagrante. Os outros ficaram, parvos
da cara, sem nada vislumbrarem. Só Justinho via os voáveis amantes de sua
mulher. E lhe explicam o padre e o feiticeiro não são possíveis ali Eles se
ausentaram em breve excursão à cidade. Todos os viram partir, todos lhes
acenaram à saída do machimbombo.
Os vizinhos lhe asseguram os bons comportamentos de Acera.
Despedem-se, cuidando de o seguir, doente que estava o viajante. Dava até azar
ter um desvairado daqueles no lugar. Mesmo o enfermeiro reformado lhe trouxe
uns comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho aceitou ficar estendido, a
apurar descansos. Dava forma à cabeça, ajustava o pensamento à existência.
E todos e tanto insistiram que ele deixou de ver gente
suspensa no tecto. Aos poucos se libertou das visões, manufacturas de suas
ciumeiras. Noites há em que, de sobressalto, se levanta. Escuta risos. O padre
e o feiticeiro se divertem à sua custa? Escuta melhor: não é gargalhada, é um
pranto, um pedido de socorro. Incapazes de descer, os homens aprisionados no
tecto lhe pedem uma aguinha, migalha de entreteter fome e sede. Os pobres já
são só ar e osso.
A voz de Acera o traz à realidade: “venha marido, se deite.
Se acalme. Não quer dormir comigo? Durma em mim, então. Não me quer atravessar?
Me use de travesseiro. Isso, descanse, meu amor”. E o tempo passava, compondo
semana e mais semana. Justinho não melhora. Mais e mais escuta as lamentações
dos dois que agonizam dentro das suas paredes.
Até que, uma noite, ele acordou estremunhado. Não eram já os gemidos dos
moribundos mas uma estrangeira acalmia. Olhou por entre o escuro e viu Acera
vagueando, o pé pedindo licença ao silêncio. O marido nem se mexeu, desejoso de
decifrar a misteriosa deambulação da mulher. Então ele viu que Acera subia para
um banco e, com um cordel, amarrava o padre e o feiticeiro pela cintura. E
assim, atados como balões, ela os transportou para fora de casa. No quintal,
Acera limpou no rosto do padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro.
Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis começaram a subir pelos ares,
atravessando nuvens e extinguindo-se no céu e nas pupilas espantadas de
Justinho Salomão.
Nessa noite, os habitantes da vila assistiram à lua se
obscurecer naquilo que viria a ser um derradeiro e permanente eclipse.
Mia Couto
Mia Couto
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