«Os Pobrezinhos»
A Catedral dos Pobres/ Joaquim Mir
452- «OS POBREZINHOS»
«Na minha família os animais domésticos não eram cães
nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres.
Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que
vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso
agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de
preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência
rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um
destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma
embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis:
irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo,
manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a
ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba,
responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em
oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:
- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era
«esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de
fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e
deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam,
isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e
junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos,
peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa
Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das
suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo,
enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer
aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)
de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha
Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque,
quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada
com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
O atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola,
serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características
insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma
espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da
minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a
Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz
era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas,
com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me
informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos
pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que
revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me
ordenasse
- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar
e eu direitinho para o cemitério a fim de ela não ter
de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto
mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da
Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que
consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres
inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E
creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma
gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de
pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis»
António Lobo Antunes
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