«Arroz do Céu»
Ilustração/ João Botelho
446- «ARROZ DO CÉU»
Ao longo dos passeios de Nova York, por sobre as estações e
galerias do subway, abrem-se grandes respiradouros gradeados por onde cai
de tudo: o sol e a chuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botões, papelada, chewing
gum, tacões de sapatos de mulheres que ficam entalados, e até dinheiro. Às
vezes, lá no fundo, no lixo acumulado ou em poças de água estagnada, brilham
moedas de níquel e mesmo de prata. Os garotos ajoelham de nariz colado às
grades, tentando lobrigar tesouros na obscuridade donde sopra um hálito húmido
e oleoso e o cheiro dos freios queimados. Fazem prodígios de habilidade e
obstinação para pescar as moedas perdidas. Alguns têm êxito nisso, mas depois
engalfinham-se em disputas tremendas sobre a posse e a partilha do tesouro:
nunca se sabe quem foi que viu primeiro.
Outros, quando a colheita promete, chegam a arriscar nisso
algum capital: juntam as posses, e entram dois, é quanto basta, no subway;
uma vez lá dentro. trepam sub-repticiamente aos respiradouros, o que é uma
difícil operação de acrobacia, para colher aquele dinheiro-de-ninguém, enquanto
um ou mais camaradas vigilantes os vão guiando cá de fora. Também os há que
entram sem pagar, por entre as pernas da freguesia e agachando-se por baixo dos
torniquetes.
O limpa-vias trabalhava há muitos anos no subway,
sempre de olhos no chão. Uma toupeira, um rato dos canos. Picava papéis na
ponta de um pau com um prego, e metia-os no saco. Varria milhões de pontas de
cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das
plataformas ochewing gum odioso, limpava as latrinas, espalhava
desinfectantes, ajudava a pôr graxa nas calhas, polvilhava as vias de um pó
branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltava um
apito estrídulo – lá vem o comboio! – ele encolhia-se contra a parede negra,
onde escorriam águas de infiltração, na estreita passagem de serviço. Até já
tinha ajudado a recolher pedaços de cadáveres, de gente que se atirava para
debaixo dos trens, e a transportar os corpos exangues de velhos que de repente
se lembravam de morrer de ataque cardíaco, nas horas de maior ajuntamento, uns
e outros perturbando o horário e provocando a curiosidade casual e momentânea
dos passageiros apressados.
Sempre de olhos no chão, bisonho e calado, como
quem nada espera do Alto, e não esperava. A vida dele vinha toda do chão imundo
e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos respiradouros
para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas eléctricas, entre as pilastras
inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca lhos tinham mandado
limpar. Eram provavelmente o domínio exclusivo de operários especializados,
membros de outro sindicato, que ele não conhecia. Nem talvez soubesse que
existiam os respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente, não
brincara nem vadiara na voragem empolgante das ruas da grande cidade, e vivia
perfeitamente resignado à sua obscuridade. Devia aquele emprego a um camarada
que era membro dum clube onde mandavam homens de peso, mas ele de política não
entendia nada, nem fazia perguntas. Como tinha nascido na Lituânia, ou talvez
na Estónia, só falava em monossílabos; e, debaixo da pátina oleosa e negra que
o ar do subway nela imprimira com o tempo. a sua face era incolor e a
raça indistinta. Antes disso tinha trabalhado em escavações, um «toupeira».
Este emprego era muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não
tinha que falar o inglês, que mal entendia.
Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de
São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja
fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa
plataforma de aço arrendado. Os casamentos são frequentes, ali, por ser chique
a paróquia e imponente a igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos,
à saída da cerimónia, num grande estrago de alegria. Metade dele some-se logo
pelas grelhas dos respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de
cimento do passeio. Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja,
de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentro das grades, por
comodidade.
Provavelmente é irlandês, o arroz não lhe interessa, nem se ocupa
de pombos: pombos é lá com os italianos, que, apesar de se dizerem católicos,
são uma espécie de pagãos. O que se derramou no pavimento da rua, lá fica: é
com os varredores municipais.
Volta e meia há casório, sobretudo no bom tempo, ou aos
domingos. E um desperdício de arroz, não sei donde vem o costume: talvez seja
um prenúncio votivo de abundância, ou um símbolo do «crescei e multiplicai-vos»
(como arroz). A gente pára a olhar, e tem vontade de perguntar: «A como está
hoje o arroz de primeira cá na freguesia?»
Aquela chuva de grãos atravessa as grades, resvala no plano
inclinado do respiradouro, e, se mão adere à sujidade pegajosa ou ao chewing
gum (o bairro é pouco dado a mastigar o chicle), ressalta para dentro do
subterrâneo, numa estreita passagem de serviço vedada aos passageiros.
A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu
os bagos a estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso;
varreu-os com o resto do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na
boca. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se
repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares
desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz?
Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz
de masmorra que escorria da parede. Mas o respiradouro, se bem me compreendem,
obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do
interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a
água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia
os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade
nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém
a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com
eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro:
alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para
dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o
para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à
patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: «Vê lá
se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.»
Confiada naquele
remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão,
sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma
colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o
levava à família. Ignorando que lá em cima era a Igreja de São João Baptista e
do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o
fenómeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e os
templos não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido,
carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência.
O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto,
pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para
encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau
contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o
objecto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente,
à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam.
José Rodrigues Miguéis
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