«Negrinha»
Conto de Monteiro Lobato
479- «NEGRINHA»
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca,
mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos
vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos
imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo,
amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no
céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar),
ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o
tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas,
esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Óptima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em
carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e
por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na
cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno?
A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os
fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase
sempre, ou frio, desses que entranham pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos
eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem
dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes.
Batiam-lhe
sempre, por acção ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra
provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava.
Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a
boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos.
E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um
cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as
horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro,
feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer croché, e as horas se lhe iam a
espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma
palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa,
pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam.
Tempo houve em que foi a bubónica. A epidemia andava na berra, como a grande
novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a
palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista.
Estava escrito que não teria
um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes,
vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo.
Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atracção
que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre,
era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de
rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de
crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes,
amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime
novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!
“Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o
senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe
tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os
frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem
fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis
da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco
do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom!
gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do
miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de
orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma —
divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada
melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em
quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do
bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha
— coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A
criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam
todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi
contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos.
Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas
foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de
mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à
espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um
canto, aguardava trémula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a
ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A
patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da
pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o
ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem
os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a
fim de receber o vigário que chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou
criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha
senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas
sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em
ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem
pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de
cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la
armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era
crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No
enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil,
fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a
alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para
o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia
moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste
criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. —
Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma
órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — reflectiu com
suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em
imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os
olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo?
Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e
nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança
artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da
sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o
beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com
assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o
êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos
pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E
muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as
meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si,
literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um
filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo
que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e
esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa estática
de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu
duro coração afinal bombeou. E pela primeira vez na vida foi mulher.
Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe
num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda
piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais
inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na
vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja
lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto
e terror. Mas não viu mais a fera antiga.
Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada
carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma —
na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a
natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca —
preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta
a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que
tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si
e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz.
Sentiu-se elevada à
altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível
viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a
boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha.
Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na
cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal
comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora
nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas
adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias
seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os
olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de
alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato
sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio
rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e
anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em
seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela
última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela
carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma
cómica, na memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira
boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”
— “Como era boa para um cocre!...”
Monteiro Lobato
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