«Somos um País de Príncipes»
Velhote Alentejano
465- «SOMOS UM PAÍS DE PRÍNCIPES»
“Recordo
um alentejano da raia, velho duns oitenta e tal anos, com que me cruzei algumas
vezes na sala de espera do IPO. Aparecia sempre de fato, o mesmo fato, de
colarinho apertado sem gravata. Quando era chamado, avançava cheio de
dignidade, como um príncipe e lhe digo que nunca vi gravata mais bonita do que
aquela que ele não trazia. Sabe, somos um país de príncipes.”
António Lobo Antunes
Cito de memória este pequeno excerto de entrevista ao
António Lobo Antunes que ouvi há dias na TSF. Impressionou-me este seu olhar
sobre um país que tendemos a desprezar. Imagino esse velho alentejano, mãos
grossas, pele tisnada, cabeça erguida, com a suave altivez que só o orgulho
numa vida honrada de trabalho consegue dar. Imagino-o, na sua aldeia, ao fim da
tarde, sentado à soleira da porta, olhando um bando de crianças imaginárias
brincando no largo da Igreja. Há muito que cada uma dessas crianças partiu sem
deixar substitutos e esvaziando de morte a vida dos que ficaram. Também ele,
noutros tempos, pensou em partir. Não que não amasse o seu Alentejo, mas para
fugir a uma vida de corpos dobrados ao sol que pouco mais dava que o suficiente
para uma refeição digna. Mas vieram os filhos.
O primeiro, estava ele em Angola, uma terra grande e vermelha como o seu
Alentejo, depois os outros três. Ainda se lembra de Angola com uma pontinha de
saudade. Não da guerra, que não deixa saudades a ninguém, nem da camaradagem
que para ele se ficou no barco de regresso, mas da imensidão duma terra que
prometia futuro. Um futuro adiado percebeu depois. Com os filhos, vem uma
responsabilidade que condiciona a aventura. Por isso ficou, a tempo de lhe ver
entrar aldeia adentro ex-camaradas de armas anunciando um mundo novo, sem
patrões nem trabalho de sol a sol, que “a terra é de quem a trabalha!” Ainda
alvitrou questionar quem lhe pagaria o salário para sustentar os quatro gaiatos
que tinha em casa quando deixasse de haver patrões, mas já baloiçavam no ar
foices e forquilhas para ir “tomar o que é nosso”.
Tivera dose de guerra suficiente para saber que a violência só serve para
agudizar o ódio, que é o que fica quando regressa a normalidade. Por isso não
embarcou “nos amanhãs que cantam”, mas foi levado por eles. Como prometido,
desapareceram os patrões de Lisboa (não que aparecessem muito), para aparecerem
outros que conhecia bem. Eram vizinhos de toda a vida e, aos Domingos,
costumavam jogar com ele à sueca no Central. Eram patrões em nome de todos, mas
eram patrões. Já não curvavam os corpos sobre as searas, nem jogavam à sueca
aos Domingos, nem se juntavam ao fim da tarde para chorar em cante as cores do
seu Alentejo. Agora eram políticos e as terras eram unidades de produção e o
Largo da Igreja era Praça 25 de Abril. Tudo mudara menos o seu salário que
antes, mesmo com dificuldade, lhe dava para amealhar algum e agora desaparecia
ainda a semana não terminara.
Quando os campos deixaram de produzir, por incúria, por incompetência, por
ignorância de quem mandava em nome de todos, regressou a miséria e a
desesperança de que se lembrava da meninice. Voltou a sonhar em partir. Ficou,
pelo menos uma parte dele, porque os filhos, os quatro, partiram em busca dum
sonho que já fora seu e que lhes entregara como que em herança. Pouco depois,
regressaram os antigos patrões e voltou a acreditar que os campos se encheriam
de espigas doiradas a balouçar ao sol quente de Agosto. Mas agora quem mandava
eram os filhos dos patrões, que falavam dos subsídios que vinham da Europa para
não semear. Achava estranho. Para ele a Europa era a Suíça, onde trabalhava o
seu mais velho ou a Alemanha onde estava a menina dos seus olhos com o marido
que dava no duro na construção. Por isso, não percebia porque é que essa Europa
que precisava do trabalho dos seus gaiatos queria pagar para nós, por cá, não
trabalharmos? Mas assim era e os campos continuavam abandonados, vazios de dar
dó. A não ser junto à raia, numas propriedades compradas por uns espanhóis que
tinham plantado oliveiras que, ouvira dizer, já estavam grandes e
carregadinhas. Talvez houvesse trabalho para a apanha.
Depois viera o euro e, com ele, as estradas e o Alqueva. Um mar d’água como
nunca vira, para regar os campos e encher do verde da esperança o seu Alentejo.
Falava-se de turismo, de magotes de gente para ver este mar d’água, mas regadio
nem um. Tanta água, tanto dinheiro, tanto trabalho para nada. Agora era a
crise. Ouvia na televisão que devíamos muito dinheiro à Europa, tanto que ele
nem conseguia imaginar quanto fosse. Só podia ser daquele que os filhos dos
patrões receberam para não semear, ou do que gastaram para fazer o Alqueva e as
estradas novas que estavam por todo o Alentejo. Só podia, porque ele não devia
dinheiro nenhum à Europa. Nem à Europa, nem a ninguém. Sempre tinha vivido com
o pouco que ganhava com o seu trabalho e se hoje tinha algum de lado era porque
a sua senhora era poupada e nunca esbanjara e os filhos, graças a Deus todos
bem, lhe mandavam algum, todos os anos.
Ele não devia nada à Europa, a não ser o facto de ter recebido de braços
abertos o seu mais velho e a sua menina, que em boa hora tinham deixado este
pedaço de terra ao abandono, sem esperança, nem futuro. Não queria saber de
dívida nenhuma, mas a verdade é que à conta dela, tinham fechado o centro de
saúde, onde ia com regularidade, mais para ouvir e ser ouvido, do que para se
queixar das maleitas que a vida lhe ensinara a guardar para si. Por isso,
quando as forças foram desaparecendo e o tisnado do sol se transformou num
amarelo pálido, vestiu o seu fato de Domingo e foi ao hospital a Évora, a mando
da mulher, saber o que se passava. Estava muito mal. Se tivesse vindo mais
cedo… Assim, tinha de ir a Lisboa fazer uns tratamentos todas as semanas. Eram
tratamentos difíceis, que o iam deitar muito a baixo, mas que, se tudo corresse
bem, o deixariam bom, porque nestas idades a doença avançava mais lentamente e
por isso tudo haveria de correr bem, dissera-lhe uma doutora simpática e
bonita, que mal falava português. Para ele não havia tratamentos difíceis.
Difícil tinha sido toda a sua vida. Por isso, todas as segundas de manhã,
vestia o seu fato de Domingo e esperava pacientemente a chegada da ambulância
que o levaria até Lisboa, ao IPO.
Nunca tinha ido a Lisboa, nem mesmo quando os seus dois do meio tinham partido
para a América, nem nunca tinha andado nessas estradas novas e largas que
atravessam o seu Alentejo. O que transportarão por estas estradas se já nada se
produz? Da primeira vez ia um bocadinho a medo, que não é vergonha nenhuma,
nestas coisas da saúde, mas lá no IPO eram todos tão simpáticos. Até havia uma
enfermeira que lhe costumava dizer que se ele fosse mais novo, ai, ai. Sabia
que era a brincar, mas sabia-lhe bem. A verdade é que a doutora que mal falava
português tinha razão e o tratamento era difícil. Agoniava-o e deixava-o sem
forças, mas isso guardava para si e nem lá em casa, à sua senhora, deixava
transparecer o quanto lhe custava, embora lhe visse a tristeza no olhar, sempre
que os grãos de que tanto gostava ficavam no prato que carinhosamente lhe
preparara. Neste último tratamento, ouvira qualquer coisa sobre uns cortes na
saúde à conta da tal dívida que nunca mais se resolvia. Rezava a Deus para que
a Europa cortasse nos alquevas, nas estradas, nos comboios que estavam sempre
em greves, ou na Câmara, que ainda ontem ouvira que ia gastar milhões num museu
qualquer, porque não sabia como ia ser se a ambulância deixasse de ir busca-lo
às segundas, ou se o tratamento acabasse de repente. Mas acreditava que a
Europa, que tinha recebido tão bem o seu mais velho e a menina dos seus olhos,
não havia de lhe falhar agora, que ele sentia que estava quase a vencer a
doença, como sempre vencera todas as adversidades que lhe tinham aparecido ao
longo da vida.
Não sei se este velho alentejano que imagino, continua a acordar de noite às
segundas-feiras, a vestir o seu fato domingueiro, a apertar o colarinho sem
gravata e a aguardar pacientemente a ambulância que o levará ao IPO, a Lisboa,
para o tratamento violento que o pode salvar. Não sei se ainda há ambulâncias
que façam este transporte gratuito, ou dinheiro no IPO para pagar os
medicamentos de que necessita. O que sei é que durante os últimos 30 anos tudo
se tem feito para que não haja. Os senhores que acordam de manhã, às
segundas-feiras, vestem um dos seus muitos fatos, apertam o colarinho e colocam
uma das suas variadas gravatas, empenharam-se durante anos em destruir o sector
produtivo, primeiro em nome do socialismo, depois em nome da Europa, ao mesmo
tempo que esbanjavam os nossos fracos recursos em empresas que só continuam
nacionalizadas porque são autênticos antros de compadrio e corrupção; criaram
um Estado pantagruélico que vive do esmagamento fiscal de quem trabalha;
permitiram o desvio de milhões de euros de dinheiros europeus levado a cabo por
autênticas redes criminosas de suposta formação profissional geridas pelas
clientelas partidárias; promoveram o endividamento das autarquias,
transformando-as em pequenos estados, onde o rigor, a seriedade e a
transparência são mera utopia; destruíram a justiça, onde só se investiga
prendendo o suspeito ou fazendo escutas, transformando o mais inalienável dos
direitos – o da inocência até prova em contrário – em mera retórica; alienaram
o futuro da segurança social em nome da equidade e da solidariedade, trazendo
para o sistema quem para ele nunca contribui e permitindo toda a espécie de
falcatruas e vigarices; incentivaram a fraude por via da completa ausência de regulação
e promoveram a existência de verdadeiros monopólios em sectores essenciais como
a energia. Durante trinta anos, foi um fartar vilanagem sem consequências,
porque esta gente que esteve no poder não nos governou, governou-se, fazendo
tábua rasa dos mais elementares princípios de gestão em prol do bem comum.
Por isso, hoje, não existe dinheiro para o essencial, as funções soberanas do
Estado, a saúde e educação. Por isso, talvez deixe de haver dinheiro para
trazer os doentes ao IPO ou para os medicamentos que os podem curar.
Por isso, não sei se este velho alentejano que imagino, continua a acordar de
noite às segundas-feiras, a vestir o seu fato domingueiro, a apertar o
colarinho sem gravata e a aguardar pacientemente a ambulância que o levará ao
IPO, a Lisboa, para o tratamento violento que o pode salvar. Só sei que se tal
acontecer, sempre que ouvir o seu nome a ser chamado, levantar-se-á e caminhará
de fato domingueiro, colarinho apertado, cheio de dignidade, como um príncipe.
Apesar dos nossos governantes, “somos um país de príncipes”.
João Almeida Moreira
Muito bom!
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