domingo, 5 de abril de 2015

OUTROS CONTOS

«Santa Eponina», por Raul Brandão.

«Santa Eponina»
Pintura de Marlene Dumas

467- «SANTA EPONINA»

«À matéria é preciso degradá-la.

Foi dos mendigos e dos leprosos. Esperavam-na cosidos com a noite para caírem sobre ela sem palavra, beijando-lhe os cabelos de oiro. Andou com os ladrões nas estradas e nas mãos de meretrizes. Desceu aos antros. Vinham as matilhas esperá-la à beira dos caminhos, nos sítios ermos e bravios e nela cevavam a sua voluptuosidade e o seu grotesco sonho de amor. Havia monstros que não se atreviam a aparecer à luz do dia, e na noite profunda só o olhar cego e frio, átono e frio, imóvel e frio, lhes luzia. Batiam-lhe. Sujeitavam-na a extraordinárias carícias, a lascívias que durante muitos anos haviam imaginado. Dormiam à sua sombra. E ela, sempre com o mesmo sorriso de piedade e de tristeza, abandonava-se alheada. Atiravam-na fora como um trapo, e santa Eponina erguia-se e partia com a sua candura imaculada. De toda a parte acorriam os mendigos ascorosos, caravanas de leprosos: alguns arrastavam-se pelos caminhos, com rugidos, outros blasfemavam na noite, não querendo morrer sem a terem possuído.

- O que eu quero? O que eu quero é dormir contigo, bem junto a mim, à minha carne onde as chagas supuram, é sentir a tua frescura na crosta desta pele que requeima como uma brasa - ó minha amada! - E as fauces abriam-se em risos que já não eram da vida mas do túmulo. - Dá-me a tua boca! O que eu quero de ti é a tua boca! - E ela curvava-se sobre os seres imundos que não tinham boca e que insistiam de entre a podridão: - Beija-me na boca!

Desceu mais baixo ainda, não por amor dos homens, mas por amor de Deus, ignorando a matéria e saindo pura de todos os enxurros humanos - santa Eponina, filha de reis, com escravos, florestas e guerreiros fortes. Desceu mais baixo que as mulheres mais baixas. A vida acabou por lhe parecer imensa floresta apodrecida onde os homens são monstros. Desceu tão baixo que chegou a ter o verdadeiro sentimento da vida, o da grande floresta putrefacta onde vagueiam seres de sonho e formas de dor mutilada, mãos geladas que tacteiam no escuro, formas cegas e formas hesitantes de pesadelo. Sentiu os contactos viscosos dos homens em esboço, só ventres obscenos, só infâmia, só grotesco e desespero...

Oh, que figura pálida e branca, na cabeça o sol enrodilhado e um fio de oiro a escorrer-lhe pelos ombros abaixo! Que figura para ser apanhada e levada para as cavernas, entre risos bestiais, cevando-se nela todas as brutalidades do instinto! Que ser inerte e delicado, sem resistência, para se apertar entre as guerras, ouvindo-se bater-lhe o coração, como o dum pássaro que se afoga - e sentindo-o morrer devagar!...

E desceu sempre, desceu mais, desceu tão fundo que acabou por ser imaterial.»

Raul Brandão

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