«Santa Eponina»
Pintura de Marlene Dumas
467- «SANTA EPONINA»
«À matéria é preciso degradá-la.
Foi dos mendigos e dos leprosos. Esperavam-na cosidos com a noite para caírem
sobre ela sem palavra, beijando-lhe os cabelos de oiro. Andou com os ladrões
nas estradas e nas mãos de meretrizes. Desceu aos antros. Vinham as matilhas
esperá-la à beira dos caminhos, nos sítios ermos e bravios e nela cevavam a sua
voluptuosidade e o seu grotesco sonho de amor. Havia monstros que não se
atreviam a aparecer à luz do dia, e na noite profunda só o olhar cego e frio,
átono e frio, imóvel e frio, lhes luzia. Batiam-lhe. Sujeitavam-na a
extraordinárias carícias, a lascívias que durante muitos anos haviam imaginado.
Dormiam à sua sombra. E ela, sempre com o mesmo sorriso de piedade e de
tristeza, abandonava-se alheada. Atiravam-na fora como um trapo, e santa
Eponina erguia-se e partia com a sua candura imaculada. De toda a parte
acorriam os mendigos ascorosos, caravanas de leprosos: alguns arrastavam-se
pelos caminhos, com rugidos, outros blasfemavam na noite, não querendo morrer
sem a terem possuído.
- O que eu quero? O que eu quero é dormir contigo, bem junto
a mim, à minha carne onde as chagas supuram, é sentir a tua frescura na crosta
desta pele que requeima como uma brasa - ó minha amada! - E as fauces abriam-se
em risos que já não eram da vida mas do túmulo. - Dá-me a tua boca! O que eu
quero de ti é a tua boca! - E ela curvava-se sobre os seres imundos que não
tinham boca e que insistiam de entre a podridão: - Beija-me na boca!
Desceu mais baixo ainda, não por amor dos homens, mas por
amor de Deus, ignorando a matéria e saindo pura de todos os enxurros humanos -
santa Eponina, filha de reis, com escravos, florestas e guerreiros fortes.
Desceu mais baixo que as mulheres mais baixas. A vida acabou por lhe parecer
imensa floresta apodrecida onde os homens são monstros. Desceu tão baixo que
chegou a ter o verdadeiro sentimento da vida, o da grande floresta putrefacta
onde vagueiam seres de sonho e formas de dor mutilada, mãos geladas que
tacteiam no escuro, formas cegas e formas hesitantes de pesadelo. Sentiu os
contactos viscosos dos homens em esboço, só ventres obscenos, só infâmia, só
grotesco e desespero...
Oh, que figura pálida e branca, na cabeça o sol enrodilhado
e um fio de oiro a escorrer-lhe pelos ombros abaixo! Que figura para ser
apanhada e levada para as cavernas, entre risos bestiais, cevando-se nela todas
as brutalidades do instinto! Que ser inerte e delicado, sem resistência, para
se apertar entre as guerras, ouvindo-se bater-lhe o coração, como o dum pássaro
que se afoga - e sentindo-o morrer devagar!...
E desceu sempre, desceu mais, desceu tão fundo que acabou por ser imaterial.»
E desceu sempre, desceu mais, desceu tão fundo que acabou por ser imaterial.»
Raul Brandão
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