quinta-feira, 9 de abril de 2015

OUTROS CONTOS

«O Mau Vidraceiro», por Charles Baudelaire.

«O Mau Vidraceiro»
Escultura de Vidro/ Daniel Arsham

470- «O MAU VIDRACEIRO»

Existem naturezas puramente contemplativas e totalmente impróprias para a acção, que, no entanto, sob uma impulsão misteriosa e desconhecida, agem às vezes com uma rapidez de que elas próprias se julgariam incapazes.

Como aquele que, temendo encontrar com o zelador uma notícia aflitiva, ronda covardemente durante uma hora frente à porta da casa sem ousar entrar, como aquele que guarda durante quinze dias uma carta sem abri-la, ou só ao fim de seis meses se conforma em efectuar um empreendimento necessário desde um ano, elas se sentem às vezes bruscamente precipitadas para a acção por uma força irresistível, como a flecha de um arco. O moralista e o médico, que afirmam saber de tudo, não podem explicar de onde vem tão de súbito uma louca energia nessas almas preguiçosas e voluptuosas, e como é que elas, incapazes de cumprir as coisas mais simples e mais necessárias, encontram em dado momento uma coragem de luxo para executar os actos mais absurdos e até, muitas vezes, os mais perigosos.

Um dos meus amigos, o mais inofensivo sonhador que já existiu, ateou fogo uma vez numa floresta, para ver, dizia, se o fogo pegava com tal facilidade como se afirma comummente. Dez vezes consecutivas a experiência falhou; mas, na décima primeira, foi por demais bem sucedida.

Outro irá acender um charuto ao lado de um barril de pólvora, para ver, para saber, para tentar o destino, para se forçar a si mesmo a dar provas de energia, para se fazer de jogador, para conhecer os prazeres da ansiedade, por nada, por capricho, por desocupação.

É uma espécie de energia que jorra do tédio e do devaneio; e aqueles nos quais ela se manifesta tão inopinadamente são, geralmente, como eu disse, os mais indolentes e sonhadores dos seres.

Outro, tímido a ponto de abaixar os olhos mesmo diante dos olhares dos homens, a ponto de ser-lhe preciso ajuntar toda a sua pobre vontade para entrar num bar ou passar diante de uma bilheteira de teatro, onde os fiscais lhe parecem investidos da majestade de Minos, Éaco e Radamanto, se jogará bruscamente nos braços de um ancião que estiver passando ao seu lado, e o beijará com entusiasmo diante da multidão espantada.

Por quê? Porque… porque essa fisionomia lhe era irresistivelmente simpática? Talvez; mais é mais legítimo supor que ele próprio não saiba por quê.

Fui vítima, mais uma vez, dessas crises e desses impulsos, que nos autorizam a crer que Demónios maliciosos se insinuam dentro de nós e nos fazem cumprir, à revelia, suas mais absurdas vontades.
Certa manhã, eu me levantara aborrecido, triste, cansado de ociosidade e levado, me parecia, a fazer algo, grande, uma acção de brilho; e abri a janela, infelizmente!

(Queiram observar, por favor, que o espírito de mistificação, que em certas pessoas não é resultado de um trabalho ou de uma combinação, mas de uma inspiração fortuita, tem parte, muito, mesmo que apenas ardor do desejo, neste humor, histérico segundo os médicos, satânico segundo aqueles que pensam um pouco melhor do que os médicos, que nos empurra sem resistência para uma série de acções perigosas ou inconvenientes.)

A primeira pessoa que avistei na rua foi um vidraceiro cujo grito penetrante, dissonante, me veio através da pesada e suja atmosfera parisiense.

Me seria, aliás, impossível dizer por que fui tomado, em relação a esse pobre homem, de um ódio tão repentino quanto despótico.

“Ei, ei” e eu lhe gritei que subisse.

Entretanto eu reflectia, não sem certa alegria, que o quarto encontrando-se no sexto andar e sendo a escada bastante estreita, o homem deveria estar experimentando certa dificuldade em efectuar sua ascensão, e esbarrando em diversos lugares os ângulos de sua frágil mercadoria.

Ele enfim apareceu: examinei com curiosidade todas as suas vidraças, e lhe disse: “Mas como?
Você não tem vidros coloridos? Vidros cor-de-rosa, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros de paraíso? Que atrevido é você! Ousa passear pelos bairros pobres e nem mesmo possui vidros que tornem a vida bela de ser ver!”

E o empurrei com vivacidade para a escada na qual tropeçou resmungando. Aproximei-me da sacada e agarrei um vasinho de flores e, quando o homem reapareceu no vão da porta, deixei cair perpendicularmente meu engenho de guerra na borda traseira de suas forquilhas; e derrubado pelo choque, ele acabou de destroçar sob suas costas toda a sua pobre fortuna inconstante, que produziu o ruído estrondoso de um palácio de cristal atingido por um raio.

E, embriagado por minha loucura, gritei-lhe furiosamente:

“A vida bela de se ver! A vida bela de se ver!”

Essas brincadeiras nervosas não são isentas de perigo, e pode-se às vezes pagar caro por elas. Mas o que importa a eternidade da danação a quem encontrou num segundo
o infinito da fruição?

Charles Baudelaire

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