«O Mau Vidraceiro»
Escultura de Vidro/ Daniel Arsham
470- «O MAU VIDRACEIRO»
Existem naturezas puramente contemplativas e totalmente
impróprias para a acção, que, no entanto, sob uma impulsão misteriosa e
desconhecida, agem às vezes com uma rapidez de que elas próprias se julgariam
incapazes.
Como aquele que, temendo encontrar com o zelador uma notícia
aflitiva, ronda covardemente durante uma hora frente à porta da casa sem ousar
entrar, como aquele que guarda durante quinze dias uma carta sem abri-la, ou só
ao fim de seis meses se conforma em efectuar um empreendimento necessário desde
um ano, elas se sentem às vezes bruscamente precipitadas para a acção por uma
força irresistível, como a flecha de um arco. O moralista e o médico, que
afirmam saber de tudo, não podem explicar de onde vem tão de súbito uma louca
energia nessas almas preguiçosas e voluptuosas, e como é que elas, incapazes de
cumprir as coisas mais simples e mais necessárias, encontram em dado momento
uma coragem de luxo para executar os actos mais absurdos e até, muitas vezes, os
mais perigosos.
Um dos meus amigos, o mais inofensivo sonhador que já
existiu, ateou fogo uma vez numa floresta, para ver, dizia, se o fogo pegava
com tal facilidade como se afirma comummente. Dez vezes consecutivas a
experiência falhou; mas, na décima primeira, foi por demais bem sucedida.
Outro irá acender um charuto ao lado de um barril de
pólvora, para ver, para saber, para tentar o destino, para se forçar a si mesmo
a dar provas de energia, para se fazer de jogador, para conhecer os prazeres da
ansiedade, por nada, por capricho, por desocupação.
É uma espécie de energia que jorra do tédio e do devaneio; e
aqueles nos quais ela se manifesta tão inopinadamente são, geralmente, como eu
disse, os mais indolentes e sonhadores dos seres.
Outro, tímido a ponto de abaixar os olhos mesmo diante dos
olhares dos homens, a ponto de ser-lhe preciso ajuntar toda a sua pobre vontade
para entrar num bar ou passar diante de uma bilheteira de teatro, onde os
fiscais lhe parecem investidos da majestade de Minos, Éaco e Radamanto, se
jogará bruscamente nos braços de um ancião que estiver passando ao seu lado, e
o beijará com entusiasmo diante da multidão espantada.
Por quê? Porque… porque essa fisionomia lhe era
irresistivelmente simpática? Talvez; mais é mais legítimo supor que ele próprio
não saiba por quê.
Fui vítima, mais uma vez, dessas crises e desses impulsos,
que nos autorizam a crer que Demónios maliciosos se insinuam dentro de nós e
nos fazem cumprir, à revelia, suas mais absurdas vontades.
Certa manhã, eu me levantara aborrecido, triste, cansado de
ociosidade e levado, me parecia, a fazer algo, grande, uma acção de brilho; e
abri a janela, infelizmente!
(Queiram observar, por favor, que o espírito de
mistificação, que em certas pessoas não é resultado de um trabalho ou de uma
combinação, mas de uma inspiração fortuita, tem parte, muito, mesmo que apenas
ardor do desejo, neste humor, histérico segundo os médicos, satânico segundo
aqueles que pensam um pouco melhor do que os médicos, que nos empurra sem
resistência para uma série de acções perigosas ou inconvenientes.)
A primeira pessoa que avistei na rua foi um vidraceiro cujo
grito penetrante, dissonante, me veio através da pesada e suja atmosfera
parisiense.
Me seria, aliás, impossível dizer por que fui tomado, em
relação a esse pobre homem, de um ódio tão repentino quanto despótico.
“Ei, ei” e eu lhe gritei que subisse.
Entretanto eu reflectia, não sem certa alegria, que o quarto
encontrando-se no sexto andar e sendo a escada bastante estreita, o homem
deveria estar experimentando certa dificuldade em efectuar sua ascensão, e
esbarrando em diversos lugares os ângulos de sua frágil mercadoria.
Ele enfim apareceu: examinei com curiosidade todas as suas
vidraças, e lhe disse: “Mas como?
Você não tem vidros coloridos? Vidros cor-de-rosa, vermelhos, azuis, vidros
mágicos, vidros de paraíso? Que atrevido é você! Ousa passear pelos bairros
pobres e nem mesmo possui vidros que tornem a vida bela de ser ver!”
E o empurrei com vivacidade para a escada na qual tropeçou
resmungando. Aproximei-me da sacada e agarrei um vasinho de flores e, quando o
homem reapareceu no vão da porta, deixei cair perpendicularmente meu engenho de
guerra na borda traseira de suas forquilhas; e derrubado pelo choque, ele
acabou de destroçar sob suas costas toda a sua pobre fortuna inconstante, que
produziu o ruído estrondoso de um palácio de cristal atingido por um raio.
E, embriagado por minha loucura, gritei-lhe furiosamente:
“A vida bela de se ver! A vida bela de se ver!”
Essas brincadeiras nervosas não são isentas de perigo, e
pode-se às vezes pagar caro por elas. Mas o que importa a eternidade da danação
a quem encontrou num segundo
o infinito da fruição?
o infinito da fruição?
Charles Baudelaire
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