«Clarice Dançava»
Conto de Lázaro Marback D’Oliveira
530- «CLARICE DANÇAVA»
Secular ancila negra,
Sob correntes paralisantes,
Fita flébil, o inquieto infinito.
-Maravilha-se
E assim mesmo… Dança.
Na realidade poder-se-ia dizer…
Clarice nasceu dançando!
Quando ainda muito pequena, pequerrucha – miúda mesmo – já
deu seus primeiros passos dançando. Seu desejo de dançar veio da alma, de dentro
de si. Por isso ninguém jamais soube por que se manifestou este talento em
Clarice.
“Por que tanto dançava Clarice?”
Clarice caminhava dançando, banhava-se dançando; dançando
sorria, dançando vivia. Quando um novo dia raiava, encontrava Clarice dançando.
Mesmo à noite se Clarice dormia e sonhava; sonhava que estava dançando.
Clarice que muito sorria pouco falava. Não pedia, não
reclamava.
“Clarice somente dançava!”
Assim crescia Clarice, dançando. O sol ao surgir parecia vir
lhe saudar todos os dias e que só resplandecia para vê-la dançar e sorrir. Na
sua alegria Clarice dançava, era assim dançando que a Deus agradecia, e
dançando dia adentro permanecia. Enfim, quando o crepúsculo retornava não raro
a encontrava dançando.
Quando Clarice dançava, dançava toda Clarice. Dançavam seus
olhos, seu dorso, seu sorriso. Até seus crespos cabelos negros, no ar, pareciam
dançar.
Aos quinze anos, não era somente devido a suas danças,
sempre originais, que Clarice a todos encantava, também pelo seu talhe já belo,
esguio, faceiro, um tanto quanto altivo.
Clarice comemorou seus dezesseis anos dançando. Na festa do
aniversário de Clarice ninguém dançou. Não, não dançaram os parentes, não
dançaram os convidados, nem mesmo os não esperados; porque todos apenas queriam
vê-la dançando.
Naquele dia foi tanto o deslumbramento das pessoas que os
pais de Clarice sentiram n’alma orgulho e felicidade por terem gerado o
talentoso ser. Além do mais, a Clarice deles apenas dançava e estava ali sob
todos os seus cuidados.
“Que mal haveria em dançar, não há no mundo inteiro pessoas
que se expressam dançando?”
“Que ganham muito, muito dinheiro dançando?”
“Não seria a dança tão antiga quanto o caminhar da
humanidade?”
Não, não era possível haver algo do mal no fato da Clarice
deles dançar! Além do mais, o mundo parecia mais vívido e menos impuro ante a
graciosidade de sua Clarice dançando.
Um dia os pais sentiram falta de Clarice. Procuraram-na.
Muitos, nos arredores, houveram visto a pequena passar, porém não souberam
informar aonde ela fora. Na verdade, não ousaram atestar se Clarice passara
indo ou se Clarice passara vindo. Isto porque se lembraram apenas de tê-la
visto dançando.
No dia seguinte, encontraram a irrequieta menininha imersa
nos florais do jardim da cidade. Era quase noite e chovia; entretanto, Clarice
dançava. Por entre os pingos da chuva seu corpo realizava contornos no espaço.
Seus pés pareciam sintonizar com o tamborilar do cair da chuva. De modo tão
lindo dançava, que as pessoas paravam para observar e ali permaneciam, aplaudindo
Clarice, dançando com Clarice.
Seus próximos sabiam que seus olhos nem-sempre-verdes
entravam numa singular apatia quando ela não estava dançando; e sobrevinha-lhe
um apático semblante demonstrando que quando ela não podia dançar o seu coração
inquietava-se sofrendo, e como era lindo ver Clarice dançar!
Seguindo insuflados conselhos dos amigos, os pais de Clarice
levaram-na ao Dr. analista. Então, Clarice pediu ao douto para dançar. Quando
Clarice dançou, o médico compreendeu que se havia alguém doente, os doentes
eram eles próprios. O que Clarice ofertava a todos era demasiado singelo e puro
para aquelas pessoas compreenderem. Toda a clínica aplaudiu e dançou com
Clarice.
Decidiu-se então que a pequena Clarice poderia dançar.
Decidiu-se como se fosse correto impedir aquele corpinho esbelto de sair
cabriolando no ar, misturando-se aos compassos musicais. Assim, desta vez, não
foi feita a injunção comum e (Ave!) permitiram que Clarice dançasse.
Agora Clarice era menina-moça mais bela da região. No colégio
a queriam dançando. Em casa, os irmãos, os parentes, os vizinhos se reuniam
para vê-la dançar.
Certo dia, resolveram levar a terna e ainda ingênua Clarice
para uma academia de dança profissional. Nas rápidas semanas seguintes Clarice
aprendera os segredos da salsa, os passos marcados da valsa, a disciplina e
altivez dos clássicos. “Ao requebrar-se no samba parecia criada entre os
bambas”. Dançava o can-can, o vira, o afoxé. Dançava nas óperas, brilhava nas
danças dos orixás do candomblé.
O mestre então disse que Clarice estava pronta. Nada mais
tinha para ensinar para Clarice.
“Ela é a própria arte da dança..”.
Recomendou-a aos melhores empresários que ele conhecia.
Aqueles que foram ver Clarice dançar quase não acreditaram…
Disputaram entre si o direito de contratá-la. Dispuseram e
discutiram com os pais dela motivos e acordos contratuais, lançamentos e
excursões, passeios, lucros e estadias, que Clarice com seu talento pagaria.
No dia da “première” novamente chovia. Clarice adentrou ao
palco, confusa e impressionada com todo aquele aparato. Bem notou como a
assistência estava lotada. Lá estavam seus pais, seus amigos, muitos conhecidos
e desconhecidos da cidade.
Pouco Clarice havia dançado e eles começaram a aplaudir.
Durante todo o tempo eles aplaudiram. Mal se podia ver, mal se podia ouvir.
Quando Clarice terminou, aplaudiam todos:
– Aplaudim-na o diretor, os músicos, a platéia e o
bilheteiro.
Vieram as grandes excursões e ao mundo Clarice encantou.
Ela não entendia bem por que ficar tão longe dos seus para
dançar; mas sempre divinamente dançou. Encantados, os leigos a aplaudiam, os
críticos aplaudiam.
– Os artistas aplaudiam.
Assim o tempo fora passando. Clarice se destacava nos
palcos, nos vídeos, nos jornais. Onde no mundo, a pequena Clarice estava, a
bilheteria superfaturava.
Foi então que notaram que Clarice dançava demais…
“Clarice dançava demais, demais!”
Clarice vivia dançando! Colhia flores dançando? “Beijava as
crianças dançando”; Abraçava os amigos dançando…
Estivessem seus pés calçados ou nus…
“Que perigo… Também dançava!”
Alguém, se pedisse para seus passos demonstrar – “Que
prejuízo!” – graciosamente partia Clarice dançando.
Foi então “para sua própria segurança” que impuseram para
Clarice: Fora do palco ela não poderia dançar (Cláusula contratual).
Também seus pés teriam de ser mantidos calçados, intocados,
presos e oleados.
No dia que Clarice dançava na platibanda do topo do
edifício…
– A platéia não aplaudia… seus pais não entendiam, seu
empresário blasfemava.
Na verdade, ela não estava se importando de estar ali,
rompendo cláusulas contratuais.
Da borda da laje do altíssimo edifício de fria arquitetura
de cimento e aço, Clarice perscrutou o horizonte e maravilhou-se, pois achou
que todo o hemisfério dançava.
Dançavam os astros, dançavam as nuvens, dançavam as marés,
dançavam as galeras e as gaivotas, ao ritmo da brisa do mar. Clarice viu também
que imersas na mesma brisa fluídica as folhas das copas das árvores dançavam.
Ela agora se sentia mais alegre, liberta; porquanto
realmente concebia haver dança em tudo.
“Em tudo? Nem tanto… “
Observou que algo estava inerte lá embaixo.
“Mesmo assim, a seu redor várias pessoas dançavam.”
De repente, pode ver melhor… Era seu próprio corpo!
Mas que importância poderia isto ter? Era apenas uma infinitésima
parte de matéria do universo paralisada.
Além do mais, ela nunca compreendera bem essas coisas.
Ela agora finalmente se sentia em um verdadeiro estado de
êxtase; fascinada! Percebera que dispunha diante de si de todo o infinito para
poder livremente dançar.
Foi assim que a pequena Terpsícore partiu…
– Dançando no ar.
Lázaro Marback D’Oliveira
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