quinta-feira, 11 de junho de 2015

OUTROS CONTOS

«Clarice Dançava», por Lázaro Marback D’Oliveira.

«Clarice Dançava»
Conto de Lázaro Marback D’Oliveira

530- «CLARICE DANÇAVA»

Secular ancila negra,
Sob correntes paralisantes,
Fita flébil, o inquieto infinito.
-Maravilha-se
E assim mesmo… Dança.

Na realidade poder-se-ia dizer…

Clarice nasceu dançando!

Quando ainda muito pequena, pequerrucha – miúda mesmo – já deu seus primeiros passos dançando. Seu desejo de dançar veio da alma, de dentro de si. Por isso ninguém jamais soube por que se manifestou este talento em Clarice.

“Por que tanto dançava Clarice?”

Clarice caminhava dançando, banhava-se dançando; dançando sorria, dançando vivia. Quando um novo dia raiava, encontrava Clarice dançando. Mesmo à noite se Clarice dormia e sonhava; sonhava que estava dançando.

Clarice que muito sorria pouco falava. Não pedia, não reclamava.
“Clarice somente dançava!”

Assim crescia Clarice, dançando. O sol ao surgir parecia vir lhe saudar todos os dias e que só resplandecia para vê-la dançar e sorrir. Na sua alegria Clarice dançava, era assim dançando que a Deus agradecia, e dançando dia adentro permanecia. Enfim, quando o crepúsculo retornava não raro a encontrava dançando.

Quando Clarice dançava, dançava toda Clarice. Dançavam seus olhos, seu dorso, seu sorriso. Até seus crespos cabelos negros, no ar, pareciam dançar.

Aos quinze anos, não era somente devido a suas danças, sempre originais, que Clarice a todos encantava, também pelo seu talhe já belo, esguio, faceiro, um tanto quanto altivo.

Clarice comemorou seus dezesseis anos dançando. Na festa do aniversário de Clarice ninguém dançou. Não, não dançaram os parentes, não dançaram os convidados, nem mesmo os não esperados; porque todos apenas queriam vê-la dançando.

Naquele dia foi tanto o deslumbramento das pessoas que os pais de Clarice sentiram n’alma orgulho e felicidade por terem gerado o talentoso ser. Além do mais, a Clarice deles apenas dançava e estava ali sob todos os seus cuidados.

“Que mal haveria em dançar, não há no mundo inteiro pessoas que se expressam dançando?”
“Que ganham muito, muito dinheiro dançando?”
“Não seria a dança tão antiga quanto o caminhar da humanidade?”

Não, não era possível haver algo do mal no fato da Clarice deles dançar! Além do mais, o mundo parecia mais vívido e menos impuro ante a graciosidade de sua Clarice dançando.

Um dia os pais sentiram falta de Clarice. Procuraram-na. Muitos, nos arredores, houveram visto a pequena passar, porém não souberam informar aonde ela fora. Na verdade, não ousaram atestar se Clarice passara indo ou se Clarice passara vindo. Isto porque se lembraram apenas de tê-la visto dançando.

No dia seguinte, encontraram a irrequieta menininha imersa nos florais do jardim da cidade. Era quase noite e chovia; entretanto, Clarice dançava. Por entre os pingos da chuva seu corpo realizava contornos no espaço. Seus pés pareciam sintonizar com o tamborilar do cair da chuva. De modo tão lindo dançava, que as pessoas paravam para observar e ali permaneciam, aplaudindo Clarice, dançando com Clarice.

Seus próximos sabiam que seus olhos nem-sempre-verdes entravam numa singular apatia quando ela não estava dançando; e sobrevinha-lhe um apático semblante demonstrando que quando ela não podia dançar o seu coração inquietava-se sofrendo, e como era lindo ver Clarice dançar!

Seguindo insuflados conselhos dos amigos, os pais de Clarice levaram-na ao Dr. analista. Então, Clarice pediu ao douto para dançar. Quando Clarice dançou, o médico compreendeu que se havia alguém doente, os doentes eram eles próprios. O que Clarice ofertava a todos era demasiado singelo e puro para aquelas pessoas compreenderem. Toda a clínica aplaudiu e dançou com Clarice.

Decidiu-se então que a pequena Clarice poderia dançar. Decidiu-se como se fosse correto impedir aquele corpinho esbelto de sair cabriolando no ar, misturando-se aos compassos musicais. Assim, desta vez, não foi feita a injunção comum e (Ave!) permitiram que Clarice dançasse.

Agora Clarice era menina-moça mais bela da região. No colégio a queriam dançando. Em casa, os irmãos, os parentes, os vizinhos se reuniam para vê-la dançar.

Certo dia, resolveram levar a terna e ainda ingênua Clarice para uma academia de dança profissional. Nas rápidas semanas seguintes Clarice aprendera os segredos da salsa, os passos marcados da valsa, a disciplina e altivez dos clássicos. “Ao requebrar-se no samba parecia criada entre os bambas”. Dançava o can-can, o vira, o afoxé. Dançava nas óperas, brilhava nas danças dos orixás do candomblé.

O mestre então disse que Clarice estava pronta. Nada mais tinha para ensinar para Clarice.
“Ela é a própria arte da dança..”.

Recomendou-a aos melhores empresários que ele conhecia. Aqueles que foram ver Clarice dançar quase não acreditaram…

Disputaram entre si o direito de contratá-la. Dispuseram e discutiram com os pais dela motivos e acordos contratuais, lançamentos e excursões, passeios, lucros e estadias, que Clarice com seu talento pagaria.

No dia da “première” novamente chovia. Clarice adentrou ao palco, confusa e impressionada com todo aquele aparato. Bem notou como a assistência estava lotada. Lá estavam seus pais, seus amigos, muitos conhecidos e desconhecidos da cidade.

Pouco Clarice havia dançado e eles começaram a aplaudir. Durante todo o tempo eles aplaudiram. Mal se podia ver, mal se podia ouvir. Quando Clarice terminou, aplaudiam todos:

– Aplaudim-na o diretor, os músicos, a platéia e o bilheteiro.

Vieram as grandes excursões e ao mundo Clarice encantou.

Ela não entendia bem por que ficar tão longe dos seus para dançar; mas sempre divinamente dançou. Encantados, os leigos a aplaudiam, os críticos aplaudiam.

– Os artistas aplaudiam.

Assim o tempo fora passando. Clarice se destacava nos palcos, nos vídeos, nos jornais. Onde no mundo, a pequena Clarice estava, a bilheteria superfaturava.

Foi então que notaram que Clarice dançava demais…
“Clarice dançava demais, demais!”

Clarice vivia dançando! Colhia flores dançando? “Beijava as crianças dançando”; Abraçava os amigos dançando…

Estivessem seus pés calçados ou nus…
“Que perigo… Também dançava!”

Alguém, se pedisse para seus passos demonstrar – “Que prejuízo!” – graciosamente partia Clarice dançando.

Foi então “para sua própria segurança” que impuseram para Clarice: Fora do palco ela não poderia dançar (Cláusula contratual).

Também seus pés teriam de ser mantidos calçados, intocados, presos e oleados.

No dia que Clarice dançava na platibanda do topo do edifício…

– A platéia não aplaudia… seus pais não entendiam, seu empresário blasfemava.

Na verdade, ela não estava se importando de estar ali, rompendo cláusulas contratuais.

Da borda da laje do altíssimo edifício de fria arquitetura de cimento e aço, Clarice perscrutou o horizonte e maravilhou-se, pois achou que todo o hemisfério dançava.

Dançavam os astros, dançavam as nuvens, dançavam as marés, dançavam as galeras e as gaivotas, ao ritmo da brisa do mar. Clarice viu também que imersas na mesma brisa fluídica as folhas das copas das árvores dançavam.

Ela agora se sentia mais alegre, liberta; porquanto realmente concebia haver dança em tudo.

“Em tudo? Nem tanto… “

Observou que algo estava inerte lá embaixo.

“Mesmo assim, a seu redor várias pessoas dançavam.”

De repente, pode ver melhor… Era seu próprio corpo!

Mas que importância poderia isto ter? Era apenas uma infinitésima parte de matéria do universo paralisada.

Além do mais, ela nunca compreendera bem essas coisas.

Ela agora finalmente se sentia em um verdadeiro estado de êxtase; fascinada! Percebera que dispunha diante de si de todo o infinito para poder livremente dançar.

Foi assim que a pequena Terpsícore partiu…

– Dançando no ar.

Lázaro Marback D’Oliveira

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