domingo, 21 de junho de 2015

OUTROS CONTOS

«Intimidade», por Jean-Paul Sartre.
«Intimidade»
Grupo de Nus/ Tamara de Lempicka

539- «INTIMIDADE»

[Excerto]

“Lulu dormia nua não só porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de roupa custa caro. A princípio Henri protestou; não se deve dormir nu, isto não se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher; ele era correto como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassí­veis) mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo, não era muito asseado, raramente mudava de cuecas; quando Lulu as punha na roupa suja, não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. No côncavo dos cotovelos, por exemplo. Não gostava dos ingleses, dos seus corpos sem personalidade, sem nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque reflectiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se sentia sempre terno, a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pelo áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.

(…)

Lulu retirou do dedo da fenda do cobertor e agitou um pouco os pés, pelo prazer de se sentir acordada perto daquela carne mole e cativa. Ouviu um gru-gru: um ventre que faz barulho me aborrece porque nunca posso saber se é o seu ou o meu. Fechou os olhos; são líquidos que gorgolham nas tripas , todo mundo tem isso, Rirette, eu ( não gosto de pensar nisso, me dá dor de barriga). Ele me ama, mas não ama minhas tripas; se lhe mostrassem meu apêndice num vidro, não o reconheceria; ele vive a me apalpar mas se lhe pusessem o vidro nas mãos não sentiria nada intimamente, não pensaria “isto é dela”; a gente devia poder amar tudo de uma pessoa, o esófago, o fígado, os intestinos. Talvez não gostem dessas coisas por falta de hábito, se as vissem como vêm nossas mãos e nossos braços, talvez as amassem; é por isso que as estrelas do mar devem amar-se melhor que nós; elas se estendem sobre a praia quando faz sol e expelem o estômago para fazê-lo tomar ar e todos podem vê-lo; eu me pergunto por onde faríamos sair o nosso, pelo umbigo, talvez. Fechou os olhos e os discos azuis começaram a girar, como na feira, ontem, quando eu atirava flechas de borracha nos discos e as letras se acendiam a cada golpe, formando um nome de cidade; ele me impediu de formar “Dijon”, com sua mania de se encostar às minhas nádegas; detesto que me toquem por trás, desejava não ter costas, não gosto que me façam certas coisas quando não as vejo; eles podem gozar sem que se lhes vejam as mãos; a gente as sente subindo e descendo, mas não pode prever aonde vão, eles olham a gente à vontade e a gente não os pode ver, eles adoram isso; Henri nunca pensou em fazer essas coisas, ele só quer saber de se encostar nas minhas nádegas e eu estou convencida de que ele me pega no traseiro de propósito, porque sabe que eu morro de vergonha de ter um e o fato de ter vergonha o excita, mas não quero pensar nele agora (ela sentia medo), quero pensar em Rirette. Ela pensava em Rirette todas as noites à mesma hora, justamente no momento em que Henri começava a balbuciar coisas sem nexo e a gemer. Mas houve resistência, o outro queria mostrar-se, ela chegou mesmo a ver, num instante, uns cabelos negros e crespos, pensou que ia acontecer e arrepiou-se porque nunca se sabe até aonde a coisa vai; se é só o rosto ainda bem; isso passa, mas houve noites em que ela não conseguiu fechar os olhos por causa de nojentas lembranças que emergiam à superfí­cie; é medonho quando se conhece tudo de homem, principalmente aquilo.”

Jean-Paul Sartre

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