«Homenagem ao Papagaio Verde»
O Papagaio Verde/ Van Gogh
523- «HOMENAGEM AO PAPAGAIO VERDE»
Um dia, quando, arquejante da rua e das escadas, cheguei à
varanda, o Papagaio Verde estava inerte no canto da gaiola, com o bico pousado
no chão. Peguei-lhe, aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão auscultei-o
longamente. Não morrera ainda. Levei-o para a sala, deitei-o nas almofadas,
puxei a cadeira para junto do piano, e, enquanto com os dedos da mão esquerda
lhe apertava a pata, toquei só com a direita a música de que ele gostava mais.
As lágrimas embaciavam-me as teclas, não me deixavam ver
distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os meus. Ajoelhei-me junto da
cadeira, debruçado sobre ele, e as unhas dele cravaram-se-me no dedo. Mexeu a
cabeça, abriu para mim um olho espantado, resmoneou ciciadas algumas sílabas
soltas.
Depois, ficou imóvel, só com o peito alteando-se numa
respiração irregular e funda. Então abriu descaidamente as asas e tentou
voltar-se. Ajudei-o, e estendeu o bico para mim. Amparei-o pousado no braço da
cadeira, onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis endireitar-se, não
pôde, nem mesmo apoiado nas minhas mãos. Voltei a deitá-lo nas almofadas,
apertou-me com força o dedo na sua pata, e disse numa voz clara e nítida, dos
seus bons tempos de chamar os vendedores que passavam na rua:
– Filhos da puta! – Eu afaguei-o suavemente, chorando, e
senti que a pata esmorecia no meu dedo. Foi a primeira pessoa que vi morrer.
Jorge de Sena
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