«Um Amor de Cão»
A Menina e o Cão/ Paula Rego
526- «UM AMOR DE CÃO»
Myra atravessou os carris desocupados em direcção ao mar.
Cresciam ervas e tojo nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés
vivas sujas de crude. O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e
verdes na distância branca e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se
para engolir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a
ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca
mais. Assoou-se à bainha da saia e limpou o resto da cara à manga do casaco de
malha. Correu com os braços abertos, um sapato em cada mão, em direcção ao
bando de gaivotas poisadas. Gritaram muito e revoaram iradas por cima da cabeça
dela, mas não a atacaram. A mãe não teria razão, ou seria na terra dela. Outros
mares, outros ares.
Começou a chover, primeiro gotas grossas, depois fios finos
e cerrados. Tudo brilhava. Era como vapor de luz que se levantava daquele
grande corpo de água a rugir. Myra começou a ficar cega de tanta chuva a bater-lhe
na cara e a escorrer pelo pescoço. Era como chorar sem gritos. Correu para o
barracão onde brincara de escondidas nesse primeiro Verão em que ainda só
falava a língua de brincar com os outros, com os olhos, gestos e risos. Correu
depressa, saltitando entre detritos, algas mortas que chiavam, baba de espuma
amarela que se abatia na chuva.
Estava muito escuro e a água estalava com força atroadora
nas chapas de zinco do tecto. Myra fechou a custo o tramelo enferrujado.
Doíam-lhe as mãos e os braços de proteger a cabeça da última sova. Ficou na
escuridão, até os olhos se habituarem às lâminas de luz das frinchas nas
tábuas. Cheirava a salmoura, bafio, peixe estragado, cordame e óleo. Junto às
paredes estavam ensarilhados ao alto os paus das barracas, panos de tela
desbotada, redes com boias de vidro, bidons pretos, latas, contentores de
plástico esventrados, lixo da praia e do mar, O chão pegava-se aos pés, uma
areia imunda e húmida. Com o mundo a desabar por cima da cabeça, Myra sentou-se
num molho de corda que lhe picava as nádegas e começou a chorar de aflição;
nunca chegaria a casa a tempo de secar antes deles virem, pela noite. Ia
apanhar de novo, da ira e do medo.
O latido uivado foi a primeira coisa que a alertou. Depois
brados, berros e risos trazidos na ventania e abertas nas águas e rebentação,
já muito perto. Myra escondeu-se atrás de um bidon, a cara inchada contra o
alcatrão, os olhos arregalados de novo terror, a respirar o menos que podia, o
coração a bater por todos os lados.
Dois rapazes grandes entraram com estrondo a arrastar numa
corrente um cão que gania e ladrava rouco. Com meio olho, Myra viu o cão a
sacudir-se com esforço. O pêlo espirrava água e sangue. Depois atirou-se para o
chão e ali ficou. Puxaram-no para um canto com algum cuidado e incentivo,
amarraram a corrente e taparam-no com uma manta que sacudiram da água.
Disseram-lhe que era um grande cão, o melhor de todos, riram a lembrar a goela
aberta do outro a espernear à morte e disseram ao cão que ficasse. Eles logo
voltariam, que ele valia mais que o peso em ouro. Ele ficou. Riram-se mais e
fecharam o tramelo de fora com toda a força. Ao longe ainda bradavam,
rapidamente ao longe, corriam.
A chuva abrandou. Pingolejava agora em tampas, fundos de
alguidar e latas de zinco. Myra saiu do esconderijo de rojo, devagar. O cão não
era dos maiores, mas era grande. Tinha o peito muito ancho e encorpado, o pêlo
curto e malhado de branco e camurça.
Os olhos eram preto-vivo, muito para cada lado da cabeça
achatada e larga. Parou de lamber-se e ficou fito nela, todo quieto e inquieto
nas narinas grandes e pretas. Myra reconheceu-lhe a traça, de há tantos anos e
tão longe terra: eram os cães de matar cães, o pior cão do mundo. O mais
valente, até à demência de morrer de raiva. Atarracado de força, nobre e tão
mau.
Continuou a aproximar-se de gatas. O animal sem ruído, sem
fazer menção de levantar-se, mostrou-lhe as presas. Myra, respeitosa, quebrou o
intenso laço do olhar e acocorou-se, os braços entre as pernas, à distância da
corrente. O bicho deitou a cabeça entre as patas, desceu as orelhas curtas, uma
delas esfacelada, fechou o beiço, uma chaga aberta da orelha até à comissura da
grande boca. A luz coada ia esmorecendo. Na meia penumbra
Myra deixou-se amolecer, gemeu. O cão voltou a olhá-la e
ganiu um ganido de cachorro, um gemido. A omoplata ainda sangrava de outra
ferida que brilhava no escuro, um coalho preto que escorria devagar até à ponta
da manta. Myra, sem se aproximar deu-lhe o nome que lhe ouvira chamar e começou
a falar-lhe de manso na sua língua materna. Desgraçado, desgraçado Rambo,
pobrezinho de ti. O animal, sem se mover, esboçou um trejeito de cauda. Deixou
de a fitar e recomeçou a lamber-se.
Com mil cuidados lentos, Myra tirou do
bolso o pão com a salsicha que roubara da lata da casa comum e pô-lo bem perto
do nariz do cão, em cima da manta. Toma, come cão, depois arranjamos mais. O
cão virou a cabeça de lado para abocanhar do beiço intacto, soergueu o tronco e
começou a comer. Myra levantou-se e foi buscar uma tampa de lata com água da
chuva.
Foi então que Myra pensou que se tinha urinado de medo. As
pernas estavam pegajosas, molhadas por dentro. Apalpou-se e viu pela mancha
escura nos dedos que era sangue vivo. Havia de ser hoje, a primeira vez, disse
sem medo para o cão. Pousou-lhe a água diante. Ele levantou-se e deixou-a
chegar-se. Bebeu, a cauda comprida claramente grata. O rabo estava a saber
sorrir. Depois começou a lamber-lhe um dos pés nus, o artelho encardido, e Myra
pousou-lhe a mão no grande cachaço com muita doçura e determinação. Fomos
feitos um para outro, Rambo. Agora temos de fugir antes que eles venham.
Maria Velho da Costa
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